Tenho uma curiosa relação oracular com a escrita, às vezes escrevo coisas que depois acontecem. Quando falo sobre isso, algumas pessoas dão risinhos e desviam de assunto, não querem saber das minhas teorias de bruxa. Mais de uma vez, no entanto, fui tombada pela sincronicidade da literatura.
No meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar, descrevo esse personagem, João – um homem forte, bonito e avesso a novas tecnologias, meio frio e imperturbável. Todo mundo que lê (e nos conhece) acha que foi inspirado no João, meu marido, que em muitos aspectos se parece com a criatura imaginada. Acontece que escrevi o livro muitos anos do João aparecer na minha vida. Quando o conheci, aliás, me impressionei foi com outra casualidade literária: na época estava trabalhando em um romance histórico em que um dos personagens se chamava João Branco. O nome do meu marido é João Branquinho. Uma coincidência boba, mas extraordinária, como são todas as coincidências. De alguma forma entendi ali, na mesa do bar, que estava diante de um encontro com o destino. Aquele homem faria parte da minha vida, e seria uma parte longa, inevitável e maravilhosa.
Corta para 2024. No meu novo romance, que entreguei há poucas semanas para a editora, acontece um grande e devastador incêndio. Dedico vários parágrafos na descrição de uma fumaça que paira sobre a cidade como uma névoa ocre e seca, uma neblina fantasma, trazendo a notícia do fim. É um livro que fala muito sobre a crise climática, como adiantei aqui, e não se trata de uma casualidade qualquer, é apenas um resumo do que estamos vivendo e vamos viver com mais frequência. Ainda assim me surpreendeu que, poucas semanas depois de colocar o ponto final na história, eu esteja encontrando ao meu redor o mesmo cenário devastador da minha ficção. Eu materializei uma imagem do futuro, e foi mais assustador porque foi de um futuro imediato.
“Escreva uma utopia agora, pelo amor de deus”, implorou a Mariana, minha fiel amiga, que já leu o livro.
Podem ser bobagens, coisas pequenas e abstratas, mas isso me aconteceu outras vezes. Escrevi histórias, e depois vi essas histórias aparecendo para mim, às vezes em forma de notícias, às vezes na forma de outros livros. Os céticos podem sugerir que o princípio atende ao chamado viés de confirmação – e se vejo as minhas histórias no mundo é que passo muito tempo pensando nelas. Pode ser. Não deixa de me assombrar, no entanto, a capacidade que a escrita tem de antecipar caminhos ou revelar situações do presente que antes estavam adormecidas na percepção.
Nesse aspecto, sempre lembro da teoria do satélite, sobre a qual já falei aqui antes. Essa imagem foi passada a mim por uma amiga, que por sua vez a escutou de um professor. É a melhor justificativa que já encontrei sobre isso de conseguir entender o mundo antes que o mundo se apresente. Escritores são pessoas com sensibilidade aguçada, ela me explicou então. Todos recebemos os mesmos sinais, mas escritores são satélites, e espalham esses sinais.
Enxergar e processar os sinais da vida, aliás, é uma ótima dica para quem sente que precisa escrever, mas não sabe por onde começar. Porque a verdade é que a escrita parte de um incômodo, uma obsessão, as ideias não surgem do mais absoluto nada, elas apenas refletem a superfície interna da alma, acessar essas pequenas janelas permite conhecer mais sobre nossa natureza, como prega a psicanálise. Arte é um mecanismo de autoconhecimento. O melhor que existe.
E quais verdades invisíveis estamos enxergando com as palavras?
Eu já me digladiava com ideias sobre o fim do mundo na Flip de 2022, quando o novo romance estava adormecido na minha mente, sob uma argamassa pesada de personagens ainda em estado embrionário. Na época, aliás, estava em vias de lançar meu segundo livro, Como se fosse um monstro. Foi quando entrei na livraria Dois Pontos e peguei para folhear o belíssimo livro de ensaios O Mundo Desdobrável, da Carola Saavedra. Li tudo no avião, durante o retorno para casa. Encontrei ali o eco de todos os meus pensamentos. Carola estava pensando nas mesmas coisas que eu. Que engraçado pensar nisso.
Em O Mundo Desdobrável, a escritora reflete exatamente sobre o incômodo e a urgência em escrever sobre o fim do mundo. A crise climática virou a nossa vida do avesso, a ficção científica mais doida parece agora um retrato bem realista do presente. E propõe um novo exercício de enxergar a literatura como um oráculo, como uma forma de acessar aquelas verdades invisíveis. Em um trechinho, ela diz:
“Quem escreve literatura sabe que a escrita é também uma forma de conhecimento, de saber o que ainda não sabemos que sabemos. A escrita como um oráculo, como um sonho. Seja da parte de quem escreve, seja da parte de quem lê. Gloria Anzaldúa, em seu livro Light in the dark, faz a seguinte afirmação: ‘Escrever é um processo de descoberta e percepção que produz conhecimento (knowledge) e saber (insight). Muitas vezes sou levada pelo impulso de escrever algo, pelo desejo e urgência de comunicar, de dar sentido, de dar sentido às coisas, de criar a mim mesma por meio desse ato produtor de conhecimento’. É interessante observar que Anzaldúa aborda a escrita como um ‘ato que produz conhecimento’, ou seja, uma passagem, uma travessia que nos permite compreender aquilo que antes era apenas intuição.”
A intuição, assim como os sonhos – outro aspecto citado por Carola em seus ensaios –, são pouco valorizados em uma cultura que ultimamente glorifica a experiência do real. Apreciamos cada vez mais a autoficção porque é mais interessante ler sobre coisas que aconteceram de verdade. Todo mundo quer beber o suco da realidade, entornar o caldo precioso do concreto, e com isso a imaginação e suas ferramentas de comunicação com o mundo invisível vão sendo deixadas de lado. As únicas vozes que vão dizer o que devemos fazer, o que podemos fazer, são essas que poucas pessoas vão escutar. Talvez por isso eu seja uma defensora irremediável da ficção, talvez por isso defenda tanto que as pessoas escrevam e inventem seus personagens, mesmo que ainda não se considerem tão boas, porque o que está em jogo aqui nunca foi a qualidade, e sim o acesso a uma experiência extraordinária e até espiritual.
Há muitos sinais chegando sobre como atravessar e interpretar as crises, sejam elas coletivas, materiais ou afetivas. Esses sinais estão escondidos sob o verbo, eles não existem até que sejam proclamados. Precisamos de satélites, precisamos de intérpretes, pessoas que criem os livros favoritos de outras pessoas, porque o entendimento só vai chegar se for colocado em movimento. Não é apenas uma atividade boa ou improdutiva, escrever pode ser de fato um mergulho no inconsciente coletivo, e aqui estou falando também de um conhecimento ancestral, esse que carregamos no DNA, que foi forjado na nossa pele, mas que também não recebe o devido holofote, porque a raridade da existência é sempre ignorada no cotidiano. Mesmo que não seja lido ou que importe para pouquíssimas pessoas, importará para você, fará sentido para você, e você é uma pessoa que vale a pena escutar.
Um dia desses recebi um e-mail muito bonito. Uma moça, cruzando o mundo em um avião, tinha acabado de ler Apague a luz se for chorar e decidiu me escrever ainda a bordo do voo. Ela estava a caminho de sua primeira aventura solo, deixando pela primeira vez os pais e a família, e encontrou no meu livro um reconhecimento acolhedor de sua coragem. Queria me agradecer, sobretudo, pela experiência de se conectar consigo mesma por meio dos personagens que saíram de mim. Fiquei feliz e comovida, como sempre fico nessas situações, mas não de uma forma vaidosa, nunca me envaideço muito com os elogios dos leitores ao meu trabalho, por mais que despertem orgulho. É quase como se os meus livros não fossem mais parte de mim. Os elogios soam então estranhos, como se falassem de outra pessoa. Às vezes tenho até vergonha se são efusivos demais, não sei como agradecer. Como você poderia me agradecer por uma coisa que eu nem sabia o que era quando fiz? Como você pode me agradecer por algo que você transformou quando leu?
O sentido que os leitores encontram talvez nem seja o mesmo que o de quem escreve, e essa é a grande beleza do negócio. De certa forma, hoje vejo que o sentimento de escrever é até meio parecido com a maternidade, porque ambos partem de um repertório de criação muito próximo da fabricação da própria vida. Ninguém sabe o que está fazendo até fazer. E por que cargas d’água alguém que tem esse poder maravilhoso de criar – personagens, não pessoas – renunciaria a ele? Para mim, é um completo mistério.
Hoje pela manhã o livro mundo desdobrável entrou na minha vida, eu ainda não o conhecia e imediatamente senti que precisava lê-lo. Sua escrita oracular chega como uma confirmação, um sinal desses que não deixa dúvidas. Simplesmente amei essa idea de satélite, e essa pergunta aqui “E quais verdades invisíveis estamos enxergando com as palavras?” vai ir parar no meu caderno de sonhos que é recheado das perguntas que eu peço que sejam respondidas enquanto o corpo descansa e a Alma viaja para os lugares entre mundos durante o sono. Obrigada por esse texto! ❤️
Um abraço.
Fabi, salvei essa edição para ler e reler mais vezes. Quanto conhecimento, quantos saberes estão presentes nela! Obrigada:)