
No último Dia das Mães eu era uma mãe recente e estava segura de que não repetiria a dose. Ao menos, não tão cedo. Com ar de galhofas assim declarei aos meus primos, no almoço anual para celebrar a nossa matriarca maior: Isabel certamente seria filha única. Quando eu pensava em tudo que enfrentamos nos primeiros meses dela — a icterícia grave, nove dias de internação (quatro na UTI), uma alergia severa a leite, os choros desesperados de cólica, os choros desesperados por tudo — a saída mais natural seria mesmo pensar que essa experiência teria que ser processada apenas uma vez. Mas a vida, esse trem misterioso que passa atropelando qualquer certeza que se invente de criar, incrementou a aposta. Em um ano, dobrei a quantidade de filhas. Desde então descobri que posso fazer brotar muitos braços e que o amor materno é repetente por definição. Nenhum bebê é igual ao outro e uma mãe é sempre a mesma mãe.
A Cora é tão delicada e boazinha que parece um suspiro. No conto Campo Geral, de Guimarães Rosa, a mãe de Miguilim descreve seu irmão como “um fiozinho do cabelo de Deus”, uma imagem que agora me soa terrivelmente acurada. Essa menina rosada e sorridente que veio me fazer mãe pela segunda vez parece mesmo um cacho diretamente arrancado do cocuruto desse Deus que eu andava desconhecendo. Perfeitas, tenho duas meninas perfeitas como poemas em movimento, não sei o que fiz para merecer tudo isso.
O povo fala muito sobre não romantizar a maternidade. O problema é que sou romancista. Eu tenho que escrever sobre a imensidão disso tudo, é claro que tenho, não estou deixando a fatia ruim de fora — ela existe — mas os sacrifícios diários que faço são a parte mínima do processo. A doação é tão longa e constante que você esquece dela assim que conclui a entrega. Cada noite em claro, cada contração de parto, o estresse, o cansaço e todas as oportunidades de outra vida que agora estão permanentemente perdidas. Uma noite boa e um dia feliz reiniciam o corpo. Você faria tudo de novo. Você fará tudo de novo, quantas vezes for preciso.
Uma mãe está sempre amando o encanto do mundo. Perdendo o encanto do mundo e reencontrando na esquina seguinte. Aprendi que a maternidade tem muitas dobras misteriosas por onde se escondem as mais fascinantes modalidades de sentimento. Você está exausta, claro. Algumas vezes é difícil espantar a neblina. Até chegar o próximo sorriso espontâneo da garota que nasceu há pouco. Até que a menina de cachinhos escuros te abrace dizendo mamãe com os olhinhos apertados. Um dia pesado e desbotado pode ganhar a mais deliciosa das levezas com um carinho assim. Sei o que estou dizendo porque ainda não deixei o puerpério e vivo todos os dias ainda marcada pelo balanço do meu útero oco. Os hormônios pesam muito desorganizados e ter duas filhas em idade tão próxima não é a coisa mais fácil do mundo. A experiência é mesmo de uma duplicidade enorme. Em um momento querer morrer e no outro saber que não se pode mais morrer.
Estou vivendo dias congeláveis. Se possível queria poder tirar uma fotografia do tempo e guardar todos aqueles instantes em uma gaveta de onde eu possa tirar para reviver de novo, podia existir uma geladeira para congelar a infância delas, para que elas crescessem e ainda assim permanecessem ali, tão pequenas e minhas. Eu não posso esquecer. Fiz até uma lista, que alimento cotidianamente, porque escrever é a ferramenta mais próxima e acessível que encontro para o método da permanência. A palavra perdura. Preciso fazer perdurar.
Minha amiga Laura disse outro dia que não sabe como é que consigo ser produtiva. O capitalismo e as minhas escolhas de vida me roubaram o descanso remunerado, é verdade. Não existe licença-maternidade para mim. Trabalho, escrevo livros e cuido delas, é um esforço permanente, mas a verdade é que sou muito privilegiada. Posso pagar por ajuda e fazer tudo isso de casa, mas há mães que precisam pegar duas ou três conduções para irem ao trabalho enquanto seus filhos são cuidados por outras mães. Mães que precisam viver distantes de seus bebês. Mães solo que não contam com parceiros presentes. Eu não tenho uma rede de apoio próxima, aqui em casa somos só eu e João, e esse é um detalhe que justifica tudo. Minhas filhas também têm um pai que cuida delas da mesma forma. A maternidade seria mais leve se todos os homens que fazem filhos soubessem ser pais.
Escrevo esse texto no bloco de notas do celular. São 3h50 da madrugada. Acabei de dar de mamar à Cora, uma glutona que agora ressona de volta ao berço, e fui até o quarto da Isabel para checar se ela está bem e voltar a cobri-la (a garota sempre chuta os cobertores para longe). Tudo que escrevo agora é assim, geralmente de madrugada, no escuro e no celular. O meu cansaço não impede que eu deixe de escrever porque não é uma questão de ser produtiva. Qual é a contribuição que estou fazendo ao mundo, com isso? Minha escrita não serve para nada além de abafar os ruídos do espírito. Que outras pessoas gostem do que escrevo e estejam dispostas a ler, até a pagar por isso, é outro gigantesco privilégio, mas escrevo por insistência, por hábito e constante necessidade de me revisitar. É o que faço. Acontece que agora tenho muito material.
Houve uma época em que eu achava que escrever era o meu propósito de vida. A coisa mais importante que eu podia fazer enquanto estivesse aqui. Enquanto estivesse viva. Agora isso não é nem um pouco a verdade. A escrita é um meio, uma condução. O meu propósito agora é ser mãe. O fato de não ser só isso é apenas uma prova de multiplicidade que deixo a elas de presente. Das tantas formas possíveis de ser mulher, escolhi ser a mãe delas e ainda um monte de outras coisas. Elas vão crescer sabendo que é possível, que é permitido ser livre e que fui muito feliz nessa decisão de deixar que sejam, meu propósito imediato é cuidar delas até que as duas possam fazer suas próprias escolhas.
O que me lembra da minha própria mãe e do quanto ela ainda cuida de mim. Algumas semanas antes de ganhar a Cora, por exemplo, eu e Isabel adoecemos. Uma gripe horrorosa, mas eu não podia me dar ao luxo de descansar. Cuidei da minha filha, administrando seus remédios até que cessassem a febre e a tosse, e só quando ela estava bem me permiti cair de cama. Foi quando minha mãe chegou aqui em casa de surpresa. Você não respondia minhas mensagens, eu sabia que você não estava bem, ela resmungou. Fomos ao hospital, quase me internaram, tive uma queda de saturação e me botaram em uma sala reservada, uma mini UTI. Tiras de elástico agarravam minha barriga e monitoravam os batimentos cardíacos da Cora, eu acompanhava o vaivém dos números com aflição. Enquanto isso, com os olhos grudados ao outro monitor, minha mãe monitorava os meus batimentos tomada pela mesma aflição. Dali a exatamente uma semana eu seria mãe de novo, e então entenderia pela segunda vez que nós nunca deixamos o posto.
Para algumas pessoas isso é um pesadelo e eu compreendo a renúncia à maternidade, na verdade agora compreendo em dobro. Já eu, que decidi por isso mesmo sem saber o que me esperava, estou sempre rodeada de maravilhamentos. Fabricar outro ser humano é incrível, é tudo isso mesmo, extraordinário até a medula, e não estou romantizando, estou apenas relatando. Mamãe é mesmo cheia de palavras.
Amei. Você constrói tantas frases belas que tenho vontade de compartilhar todas. Gosto especialmente das imagens improváveis que você constrói. É tão gostoso te ler.
Que texto mais lindo, Fabi. A maternidade e a escrita também estão entrelaçadas na minha vida e te entendo perfeitamente. É um amor que sai pra fora do peito. E posso te adiantar, como mãe de pré-adolescentes, que só aumenta!