No mês passado reencontrei uma amiga que eu não via há cinco anos, desde que ela resolveu desbravar terras irlandesas, e nesse reencontro fui obrigada a encarar minhas próprias conquistas, o que pode ser tão constrangedor quanto pesar os fracassos. Você conseguiu tudo que você queria, ela disse, sorrindo com orgulho. Na nossa última conversa, como também ainda me lembro, eu falava em viver de escrever, publicar meu livro, ter uma casa, ser mãe. De certa forma é muito bom poder dizer que eu consegui isso tudo. E não é que não esteja feliz – os últimos anos têm sido os mais felizes da minha vida até aqui. Saber a direção para onde ir, e tomar todas as decisões para chegar lá, foi a grande sabedoria que tive aos vinte e poucos anos. A questão é que isso não me tornou uma pessoa vazia de angústias. A realização de sonhos não é uma cena de cinema – a euforia interminável, os fogos de artifício, uma trilha sonora de redenção. É apenas o tecido da realidade se dobrando de uma forma diferente, uma forma mais agradável, e até as melhores notícias trazem seus desafios.
Não quero soar como uma dessas pessoas perpetuamente insatisfeitas com o próprio progresso, sempre desejando mais. Não se trata disso, pelo contrário. Durante os festejos de fim de ano, ao avaliar possíveis metas para 2025, descobri que não há nada mais que eu queira, justamente por estar tão satisfeita. Sim, há coisas pelas quais torço e espero – que meu parto transcorra bem e a Cora venha com saúde, por exemplo, que eu consiga realizar uma transição suave na maternidade das minhas duas meninas, que a edição do livro novo seja frutífera e tenhamos uma boa colheita literária. Mas isso não é nem um pouco parecido com a minha lista de planos de antigamente. Eu era um trator obsessivo de metas. Agora só quero viver aqui nesse cantinho, desejando a paz de um dia bom, tranquilo, de preferência um em que eu possa dormir. Nesse momento, reservo os grandes auspícios e as minhas orações para outras pessoas – que uma amiga se cure de um câncer, que a minha irmã encontre o amor. Por elas desejo mais.
Embora tenha lá as minhas pequenas infelicidades – e faça terapia religiosamente – sinto que sou uma pessoa de muita sorte. Tenho tudo que preciso para viver. Tanta satisfação, tanta benção, chega a me causar um pequeno pânico. Fico procurando as brechas por onde a minha vida vai se despedaçar. Tenho medo de quando as coisas vão muito bem, porque isso só pode significar que em algum momento eu vou me dar muito mal, como se o universo obedecesse a esse dualismo cru. Minha amiga me mandou outro dia a definição de um vocábulo: Cherofobia, ou o medo da felicidade. Aparentemente, sou cherofóbica. Ou apenas ansiosa e controladora? Já não sei mais.
O que sei é que padeço de um problema que batizei de síndrome do narrador. Talvez outros escritores sofram da mesma situação (se alguém se reconhecer, manda um comentário). A questão é que, de tanto escrever histórias, às vezes acho que estou dentro de uma. De repente me vejo pilotando o roteiro dos acontecimentos, tentando adivinhar os rumos dos próximos capítulos, presumindo o caráter das pessoas como se fossem personagens. Todos vivemos histórias, sim, mas ninguém tem controle sobre o destino, que é o cruzamento de milhares de outros caminhos, e a ordenação desse caos pertence a esferas de consciência muito mais altas. É impossível encontrar sentido em uma linha cronológica que ainda está sendo vivida. A única coisa que dá para fazer é sentar e esperar. Ver no que vai dar. A vida não tem a lógica das histórias. A nossa jornada não é uma jornada do herói. É muito mais desequilibrada e instável. Nem sempre há dragões a serem mortos, vilões a serem derrotados. Às vezes, você é o vilão.
É possível que, no reexame do passado, as histórias pessoais façam mais sentido – pelo menos em relação aos arcos que já foram concluídos. É óbvio: tudo fica mais claro depois que passa. O problema é que, até que venha a morte, nada disso passou de verdade. Até o que foi às vezes volta. O que não foi devidamente curado reincide. E a lógica que a gente tanto procurava, aquele roteiro bonitinho que coroaria o fim da temporada, de repente é estragada por um furo enorme, uma morte surpresa tirando um personagem importante, um corte de orçamento. E é justamente da imprevisibilidade que eu tenho medo.
Estou tentando não ter tanto medo assim desse terreno caótico, até porque eu sou a própria imprevisibilidade em pessoa. Uma coisa pouco dita sobre estar grávida é como os hormônios alteram a química do seu cérebro. Falam sobre o puerpério e a forma como as mulheres ficam meio doidas após o parto, mas no meu caso isso acontece em todo o período gestacional. Eu, tão controlada, tão narradora da própria vida, de repente me vejo tendo reações desproporcionais aos acontecimentos. Sentindo profundezas que nunca antes naveguei. Sinto meu corpo inchando e explodindo de euforias e tristezas diversas, choro – às vezes choro por horas a fio. Troco palavras, escrevo errado, guardo as coisas em lugares estranhos, tenho sonhos vívidos e mirabolantes, vejo vultos. Acho que estou enlouquecendo, depois penso que é uma experiência espiritual. Certeza, mesmo, não tenho de nada. Se eu fosse mesmo uma narradora dessa vida, eu seria do tipo não confiável.
Nada te ensina mais do que a transformação do corpo e o consequente estilhaçar da mente. Você se vê como uma pessoa, se posiciona assim no mundo, cria seu castelinho de certezas, até entender que essa existência inteira é apenas uma projeção. No fundo, somos uma sopa de fenômenos químicos, e a nossa consciência é o mistério mais bem guardado do universo (gosto muito desse TEDx aqui, meu preferido, sobre uma neurocientista que sofreu um derrame e documentou a experiência em primeira mão, vale a pena ver). Como é possível esperar qualquer lógica de uma vida assim? Eu, que no momento tenho uma outra existência nadando nas minhas cavernas internas, o que em si já é uma magia de outra ordem, nem me atrevo. Para o novo ano, portanto, não faço planos, exceto o de não narrar os dias. O que eu quero mesmo é deixar que eles me aconteçam.
Tem um amigo meu que parece cercado de pessoas lindas e maravilhosas. Uma vez falei pra ele que o diretor da vida dele era muito generoso. Ele disse: o diretor sim, já o roteirista...
sofro do mesmo medo que vc Fabiane! toda vez na vida em que estive mto feliz tinha medo que uma tragédia acontecesse. e hoje, que ando muito mais melancólica e desanimada do que já fui, tenho saudades da época da euforia e da libido por viver e experienciar. o que me indica que na verdade a vida é pra ser degustada.