Há alguns dias, tive uma forte crise de ansiedade. Minha cabeça disparava, imaginando os apocalipses de sempre, e contagiava meu coração com a ameaça do perigo. Eu vou morrer, disse para o meu marido, porque é sempre na morte que eu penso, como se a coisa mais absurda fosse o meu acabar. Anos de terapia ensinaram a lidar com minha ansiedade, a reconhecê-la e aceitá-la, mas dessa vez foi difícil amansar o cavalo da mente. Respirar não era mais possível e nem segurar gelo resolvia. Naquele momento, girando em círculos na minha casa, decidi fazer uma coisa diferente e me joguei no chão.
Não sei se essa é uma estratégia abordada pela psicologia, mas funcionou. O chão gelado e desconfortável me fez desviar o foco das ameaças que estavam do lado de dentro para reparar naquela sensação física, um tanto inédita, de estar aterrada. Quando meu corpo se acostumou à temperatura e se moldou à cerâmica, a ansiedade voltou a gritar seus impropérios. Então, comecei a executar uma série de exercícios físicos, como flexões e prancha. Em alguns minutos, estava calma feito um bebê.
Esse pequeno episódio me fez compreender alguns ensinamentos mais antigos do que o mundo. Não sei em qual momento aprendemos a valorizar o pensamento como o protagonista da história quando é esse invólucro de carne, em suas várias formas e tamanhos, que conduz a consciência. É ele que, quando adoece, limita todo o resto. Ele que impera sobre as vontades. Demorei trinta e um anos para entender que precisava ouvir também o meu corpo, porque a verdade é que não estou separada dele, nunca estive, e tenho que cuidar dele no sentido mais físico do cuidado. Isso é óbvio, alguns dos leitores desta newsletter podem dizer. Eu sei que é quase a bíblia do bem-estar (alimente-se melhor, durma bem, faça exercícios físicos, beba água). O negócio é que a vida pode até ter algumas verdades sagradas, atestadas por quem veio antes e experimentou, mas quem vive só aprende quando precisa. No meu caso, precisei estar doente, por dentro e por fora, para entender.
Estou contando essa história porque, nos últimos tempos, tenho tido muitas pequenas revelações pessoais, um conhecimento íntimo que foi decantado e só agora consigo enxergar. É um processo muito bonito de crescimento, o de poder olhar para as experiências do passado e tirar dali algum sentido. Tenho pensado muito, sobre tantas coisas, que às vezes até me sinto cansada, embora contente pelo poder de percepção. Inevitavelmente, muito do que eu tenho sentido vai voltar em forma de história, porque é o que eu faço. Mas algumas coisas não vão. Essa também foi uma das minhas revelações. A minha mente de escritora está conjugada a um corpo que precisa respirar e aprender. Embora o papel de mensageira seja uma missão viciante, não é possível escrever sobre tudo.
Deve ser o conselho mais antigo das oficinas de escrita, aquele papo de escreva sobre o que você conhece. Eu mesma confesso que já o coloquei em prática. O que ninguém diz é que não é bom olhar demais para o mundo com os umbigos cheios de perspectiva, sob o risco de fabricar mais um punhado de livros sobre personagens-escritores de classe média. Sei que é complicado não usar o que é visto e vivido. Para quem não sabe, escritores têm uma mania secreta de catalogar algumas sensações para arrotar tudo mais tarde. Nessa loucura, traumas acabam virando inspirações. Sofrimento vira motivo de regozijo criativo.
Não. Com o tempo, você vai percebendo que a matéria-prima é a vida, mas não necessariamente a nossa. Certas percepções, sim, são aproveitadas, ressignificadas, mas outras convém deixar guardado naquele cantinho especial do sentir. Algumas coisas vão doer demais para escrever sobre elas, e não há nada de errado nisso. A não ser que a proposta seja fazer autoficção1, é muito bonito saber separar, criar sem urgência, escutar mais, viver mais, e criar gente diferente da gente. Não é só sobre aquilo que se conhece. Às vezes, é justamente sobre imaginar o desconhecido.
Gosto de brincar que dentro de mim existem duas memórias: a minha, única e relativamente jovem, e a de todas as pessoas e mundos que crio. As duas se misturam, de vez em quando, ameaçam um crossover. Mas nunca deixam de ser o que são. Talvez os meus personagens, inclusive, sejam melhores que eu. É bem possível que eles aprendam a existir mais rápido.
Que fique claro que eu não tenho nada contra uma autoficção bem-feita, vibrei com o Nobel da Annie Ernaux. Estou falando sobre ficção de uma maneira geral.
Tão bom ler o que a gente no fundo pensa dito bonito assim por ti <3 tô gostando muito de receber tuas newsletters
Que relato lindo, Fabiane, me vi muito nas suas palavras. Até me deu umas inspirações e reflexões por aqui, obrigado por compartilhar <3