Não vou mentir para parecer elevada. Quando me perguntam se tenho algum sonho como escritora, logo penso na minha tatuagem de Jabuti. Minhas tatuagens são todas discretas, veja bem, mas estão espalhadas em abundância por este corpinho, e eu sou do time daquelas pessoas bregas que gostam de significados. O meu sonho literário mais frequente envolve, pois, um pequeno Jabuti tatuado no braço, arte que eu faria logo depois de ganhar aquela cobiçada estátua verdinha. Nunca foi um sonho para agora, claro. Se tudo der certo ainda tenho um punhado de anos de escrita pela frente, e sempre pensei que em algum momento pudesse chegar lá, acertando o júri com um tiro certeiro de boa literatura. Na semana passada, contudo, toquei a pontinha do meu sonho, até senti sua barriguinha aveludada. Surpreendendo muita gente, inclusive eu mesma, meu romance Como se fosse um monstro está entre os semifinalistas da edição de 2024 desse estimado galardão literário brasileiro.
Foi de fato uma surpresa enorme. Não que eu não acredite no meu trabalho, deixo isso claro. Como se fosse um monstro é resultado de muitos anos de labuta espiritual e criativa, considero o meu livro mais maduro. Mas é que, pelo histórico das listas até aqui, achei que não teria chances. O Monstro não entrou na lista de semifinalistas do Oceanos, nem foi finalista do Prêmio São Paulo (e eu tinha esperança ali, tanto é que fiquei meio brocoxô e escrevi essa edição chorando as pitangas em público). Diante disso, desapeguei. As listas costumam ser bem fiéis umas às outras. Se eu não estava em nenhuma das que vieram, não estaria na maior de todas. No dia do anúncio – isso eu sabia que ia rolar, mas nem esquentei a cabeça – segui minha rotina e fui fazer o almoço, como faço todos os dias. Repousando ali do lado, o telefone logo começou a estralar de notificações. A primeira mensagem que li foi da minha editora na Alfaguara, Fernanda Dias, me dando parabéns pela indicação. Quase caí para trás, as mãos tremendo desligaram o fogo na hora. Arroz, caldo de lentilhas e frango assado. Esse foi o cardápio do dia.
Nem todo mundo entende a dimensão disso. A minha mãe, por exemplo, ficou confusa ao me ver tão eufórica. Mas você ganhou ou está concorrendo, ela perguntou, antes de decidir se anunciava no grupo da família. Depois que expliquei, ela preferiu aguardar. Sábia.
Para quem não sabe, o Jabuti meio que segue a lógica dos prêmios gringos: primeiro tem a lista dos dez semifinalistas, a longlist, depois a dos cinco finalistas, a shortlist. Embora algumas pessoas já se refiram aos dez indicados como finalistas, o que sinceramente nunca entendi, os cinco remanescentes de onde sairá o nome vencedor serão anunciados em 5 de novembro. Estou na expectativa, mas confesso que acho meio difícil chegar lá com tanta gente boa e gabaritada ali me fazendo companhia. Tampouco acredito que a tatuagem vai sair agora. Para mim, estar nessa semifinal já é a vitória, como expliquei para mamãe (ela não ficou muito convencida, achou que eu finalmente ia ganhar algum dinheiro). Essa é uma ótima vitrine para meu trabalho. É uma oportunidade única de que mais pessoas conheçam meu romance – ou finalmente deem uma chance ao coitado, porque muita gente até já ouviu falar no livro, mas nunca animou de ler.
Como já escrevi exaustivamente nesta newsletter, a vida de quem escreve é bastante ingrata. Se você não é do meio, não conhece as pessoas certas, não é lá uma pessoa muito bem relacionada e nem mora em certos locais, fica muito difícil que te enxerguem. É uma vida dura, que envolve muito trabalho e disposição de persistir. Hoje falo de um lugar relativamente privilegiado, porque estou em uma editora fantástica e conto com a assessoria de uma agência literária igualmente maravilhosa. Mas nem sempre foi assim. Escrevo profissionalmente há quinze anos. Sei que quero ser escritora a minha vida toda. Eu precisei acreditar em mim mesma muitas vezes ao longo desse percurso, inclusive ouvi isso de uma entidade, certa vez, ao frequentar um terreiro de umbanda: é só acreditar em você, sopraram no meu ouvido, no meio do passe. Lembro do recado todos os dias, mas é que é bem difícil. Ter fé. Sinto muita dificuldade em acessar esse elemento crucial da jornada humana. Às vezes, os meus olhos só conseguem enxergar o que vejo, e eu me desespero achando que as coisas nunca serão diferentes.
Das muitas coisas que aprendi, no entanto, é que essa fé que a gente precisa ter no próprio trabalho, sendo artista, tem muito pouco a ver com agradar ao que está posto. É um erro tentar se adequar para caber neste ou naquele espaço. Embora mudem lentamente, as coisas de fato mudam. Nós não temos essa habilidade de enxergar as mudanças. Se você conversasse comigo há dez anos, por exemplo, encontraria uma jovem cheia de amargura no coração, uma escritora que achava que nunca haveria um lugar para ela. Eu pensava que estava em uma espécie de limbo, por não me ver refletida em nenhum escritor contemporâneo. O meu erro foi achar que tudo seria para sempre imutável.
Na época em que comecei a alimentar meus sonhos estranhos e megalomaníacos com quelônios, a cena literária era ainda menos heterogênea do que é hoje. Havia uma espécie de divisão invisível. Existia a literatura que ganhava prêmios – composta pelos escritores de verdade, com romances sérios, complexos, alternativos, com relevância social e política – e existia a literatura comercial, abarcando os livros que vendiam, os romances despretensiosos, e os demais livros de gênero que, por assim serem, nunca foram considerados de muito valor. Essa divisão, vamos combinar, ainda existe. O preconceito contra gêneros como ficção científica, terror e ficção fantástica segue enorme, embora esteja sendo desmitificado – em grande parte, graças às amigas latino-americanas que honram o rolê. Pouco a pouco, contudo, vai caindo por terra a ideia de que um romance que vende bem é, necessariamente, um romance com pouco requinte técnico. E que um livro bom necessariamente tem que exibir alguma inovação formal. A esperança é que, daqui a pouco, mais gente veja que sair do realismo é uma chance de engrandecimento literário, e não o contrário.
Eu achava que não teria nenhuma chance na “ala dos literatos” porque meus romances não são essas leituras complexas que exigem musculatura especial do intelecto. Já me disseram várias vezes, inclusive, que escrevo de um jeito simples. Não me ofendo com isso. Sempre repito: só deus sabe quanto feijão com arroz comi para aprender a escrever desse jeito simples. Não tenho nada contra as leituras mais densas e complexas, mas já aceitei que o meu terreno dentro desse enorme latifúndio literário é um pouco mais humilde. Pertenço à tribo dos bons contadores de história. É isso que faço.
Reconheço e admiro os artistas visionários, aqueles que buscam testar e remodelar a linguagem, que encaram as palavras como criaturas vivas, e arrancam da escrita uma experiência quase sensorial. Eu só não sei fazer isso. E olha que já tentei (durante uma fase excepcionalmente horrível da minha escrita, tentei imitar o Guimarães Rosa, e o resultado foi uma desgraceira completa). Não sei fazer aquela coisa de longos fluxos de consciência, gosto muito de usar maiúsculas e minúsculas, amo orquestrar parágrafos, e não encontro muito o rumo quando escrevo sem trama. Eu gosto de tramas, bebi muito da água de vários gêneros. Gosto de personagens humanos, às vezes sou terrivelmente apegada à linearidade, amo uma história assim bem construída. Algumas pessoas podem me considerar menos artista por isso. Podem achar que falta sofisticação, bagagem intelectual, referência. E talvez falte mesmo.
Estar nessa semifinal do Jabuti, entretanto, me mostra que fiz a coisa correta ao abraçar o que eu sou. Foi só quando parei de tentar imitar os mestres, ou fazer uma coisa que eu não sabia fazer, que minha escrita evoluiu. Há espaço, sim, para o tipo de coisa que escrevo, para a linguagem do lugar de onde venho. Há muita sofisticação na simplicidade, e a verdade é que eu sempre quero te contar uma história do jeito mais bonito e elegante que eu puder.
Vejo muitos escritores iniciantes se encolhendo e até se impedindo de escrever por medo de não atingir uma determinada performance, de não atender ao gosto dos fregueses, e lamento que seja assim. Acho que ninguém precisa tentar se adequar a todo custo. Artista é quem escuta a voz da sua obsessão e segue em frente, mesmo que não pareça haver espaço ainda, mesmo que as pessoas não compreendam (ou não valorizem) aquilo que você faz. Quando é verdadeiro e íntimo, o espaço aparece, as coisas florescem e se transformam. Falo por experiência própria.
Dito isso tudo: torçam por mim. Se alguém quiser fazer uma mandiga para eu passar entre os cinco finalistas finalíssimos, estou aceitando.
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Que texto honesto, Fabiane! Acho que só quem escreve e acompanha o universo da escrita sabe do peso que é sequer ser nomeada a um Jabuti. Parabéns demais pela nomeação e também por abraçar a escrita simples. Vejo muitos escritores tentando copiar autores que elas admiram, o que é legal beber de diferentes fontes, desde que a gente não se abandone nesse processo criativo. E ver uma autora que não se deixou de lado e está na lista Jabuti é de aquecer o coração. Obrigada obrigada obrigada, e parabéns!❤️
Parabéns! Estive nas listas duas vezes. O sonho continua...