A história de quando tentaram usar meu trabalho de graça
Aprendendo meu valor

Tem um episódio da minha vida literária sobre o qual não penso muito, porque me dá indigestão. É a história de uma grande sacanagem que aconteceu há oito anos. Nunca a contei publicamente. Até agora.
Em 2016, eu publiquei o meu primeiro texto a ser lido por uma audiência de tamanho razoável, um folhetim chamado Pequenas esposas, disponibilizado no formato seriado pela Revista AzMina. Era uma história pesadíssima de pedofilia e casamento infantil e tinha como protagonista a Maria Vicentina, uma menina que era vendida pela família para se casar com um grande fazendeiro. Em sua nova casa, Maria acaba fazendo amizade com Arthur, o filho do seu “marido”, que tem a mesma idade que ela. Apesar do tema horrível e da escrita vergonhosamente imatura, a minha ideia era construir uma narrativa delicada sobre pobreza, o fim da infância e pelo menos tinha um final bacana (Maria é resgatada pela mais improvável das salvadoras, a ex-mulher do fazendeiro, mãe de Arthur, que um dia também conheceu o abuso).
Não me interesso mais em escrever esse tipo de história cheia de sofrimento feminino, mas esse texto não é sobre isso. Esse texto é sobre como Pequenas esposas chegou às mãos de um grande e premiado diretor de cinema, que imediatamente me escreveu, na intenção de transformar o folhetim em um filme. Meu coração quase parou ao receber o e-mail.
Na ocasião, calhou de eu estar em São Paulo visitando uma amiga, então marquei um café com o diretor em um shopping chique em um bairro rico da cidade (acho que era Higienópolis). Entrei no café me tremendo de ansiedade. O cara chegou logo depois e tivemos uma conversa muito agradável. Ele foi realmente bem legal e gentil. Ficou fascinado pela história e me avisou que buscaria alguma produtora interessada em investir no projeto. Logo me mandaria notícias, prometeu.
Vale lembrar que, nessa época, eu não era uma escritora “reconhecida”. Estava correndo atrás de uma editora para publicar o folhetim, aliás, e tinha duas casas independentes interessadas, mas o contato não avançava, os editores em questão mal respondiam meus e-mails (quem já viveu sabe). Meu sonho estava emperrado e eu achava que nunca sairia daquela lama, que ninguém nunca reconheceria o meu valor. Então, quando esse diretor apareceu, me senti subitamente energizada. Senti que fazia algo muito valioso, sim. Eu contava histórias que quase ninguém mais estava contando, de um lugar praticamente ignorado.
Assim como nos meus outros livros, a trama de Pequenas esposas se passa em Goiás e em Brasília. O diretor achou isso interessantíssimo, lembro que discutimos locações e tudo mais. Era um destaque a mais para a história, algo que poderia interessar as produtoras. Eu era um bichinho exótico. Ainda sou.
Algumas semanas depois, ele me escreveu para contar que uma produtora parceira, uma das mais conhecidas do país, tinha gostado muito do projeto e estava interessada. Quase chorei de emoção. Eles vão entrar em contato para falar sobre os próximos passos, ele disse. Se eu quisesse poderia até participar da escrita do roteiro, prometeu.
Eu era uma menina nessa época, não tinha nem 28 anos. Era ingênua até a medula. A produtora de fato me procurou, nos falamos por telefone algumas vezes, estavam muito pilhados em investir no projeto, mas o mercado audiovisual é ainda pior do que o literário: tudo caminha a passos de tartaruga. O meu principal contato na produtora era uma mulher negra que gostava muito da história e se mostrava empenhada em levar para frente (uma profissional que sigo admirando), mas ela acabou saindo da empresa, o que atrasou um pouco o andamento das coisas. Por um tempo achei que nunca mais teria notícias deles e que essa seria mais uma pá de terra no meu cemitério de oportunidades perdidas.
Alguns dias depois, no entanto, recebi a proposta que estava esperando. Abri o documento cheia de empolgação, no maior estilo a vida presta. Mas o meu sorriso foi virando pó ao ler todas as letras miúdas e descobrir que a proposta era, simplesmente, utilizar a minha história sem pagar nada por isso.
Aqui cabe uma breve explicação sobre como funciona o mercado de adaptação de obras literárias no Brasil, para quem não está familiarizado. As produtoras (ou diretores e outras partes interessadas) geralmente firmam um contrato de opção, que é o direito de explorar comercialmente a história. A opção não garante necessariamente que o filme será feito e nem cede por completo os direitos ao produtor, é como se fosse apenas um empréstimo da ideia, uma autorização para que os produtores busquem recursos e consigam levar a cabo a força-tarefa hercúlea que envolve a produção de um filme. Esses contratos possuem um prazo, geralmente de dois anos, renovável por mais dois. Ao fim desse prazo, os produtores precisam decidir se vão exercer a opção (e comprar efetivamente os direitos), ou se vão abrir mão — nesse caso, os direitos voltam para o autor, que está livre para negociar com outras pessoas.
Ao firmar um contrato de opção, os autores em geral recebem um percentual de 10% ou mais do valor total de venda dos direitos. Vamos supor que alguém ofereça 100 mil reais para adaptar sua história, por exemplo. Esse é o valor da cessão, mas a produtora te pagaria 10 mil pela opção, um dinheiro que funciona como uma espécie de garantia ao escritor de que há interesse efetivo na história. Não cabe devolução. Ou seja, mesmo que o projeto não vá para frente, o autor fica com o dinheiro. Se exercerem a opção, ele recebe o montante restante, descontado esse valor que foi antecipado.
O que hoje me deixa indignada, ao olhar em retrospecto, é que a produtora não me ofereceu um centavo sequer pela opção ou cessão dos meus direitos autorais. Nada. Nem um valor simbólico. Se não me engano, eles diziam que me pagariam um valor a negociar caso o filme fosse feito, e que eu teria participação na bilheteria. Estamos falando de uma produtora renomada, acostumada a negociar contratos desse tipo o tempo inteiro, que tentou se valer do fato de que eu era uma escritora desconhecida e sem influência para explorar uma ideia minha. Por sorte, liguei para alguns amigos do meio e todos reforçaram o absurdo daquela situação. Recusei a proposta na hora.
Hoje não, Faro.
Nunca mais ouvi falar da produtora ou do diretor.
Veja bem, o que mais existe são opções sendo negociadas no mercado audiovisual brasileiro. As produtoras estão o tempo inteiro de olho nos lançamentos de livros nacionais, em busca de histórias que podem virar filme ou série. Claro que muitos filmes não são adaptações e partem de roteiros originais, mas existe um interesse significativo em adaptar — afinal, às vezes é mais “fácil” pegar uma história que já está ali, prontinha, do que criar algo inteiramente novo. Sabe o Ainda estou aqui? Um dia o Marcelo Rubens Paiva negociou a opção, provavelmente sem desconfiar que o filme ganharia o Oscar.
Grande parte das opções comercializadas sequer vão adiante. É muito comum que os planos mudem, que as produtoras se interessem por outros assuntos, o mercado se vire para outra direção, que a Ancine não libere recursos, etc. Por isso nossos livros não viram filmes com mais frequência, porque dá um trabalho desgraçado finalizar o processo.
Por algum tempo me martirizei por defender meu quinhão. Achei que devia ter aceitado a proposta da produtora. Afinal de contas, o que eu poderia exigir, sendo tão desconhecida? Se fosse para frente, aquela seria uma oportunidade de ouro. Qual seria a novidade, aliás? O que eu mais fiz na minha vida foi trabalhar de graça. Porque é isso que fazem com os artistas. Querem explorar comercialmente ou intelectualmente o que você faz, mas não querem te remunerar por isso. Quando oferecem alguma coisa, são migalhas em bandeja de papelão. Às vezes, se você recusa, é chamada de arrogante. É uma forma de divulgar o seu trabalho, dizem. Já caí muito nesse conto do vigário e vou dar um spoiler: o nosso trabalho permanece invisível depois do serviço, porque um nome que não foi relevante o bastante para ser remunerado não recebe muita coisa em termos de atenção. A divulgação é uma promessa que nunca se cumpre.
Hoje não trabalho mais de graça. A gente se rebaixa tanto, está tão acostumada a ouvir que nossa arte não é útil e não dá dinheiro, que não entendemos o quanto histórias boas e originais são valiosas. Existe um mercado enorme para bons escritores, bons inventores. O difícil é entrar nele, porque a concentração é sempre no Sudeste e parte de inúmeras bolhas de gente influente. Difícil, sim, mas não impossível (vide o meu caso). O primeiro passo é parar de aceitar migalhas e começar a exigir o valor justo daquilo que você produz. O segundo é buscar intermediários, editoras, produtoras e agentes literários.
Hoje, quase dez anos depois, a minha situação é bem diferente.
Meus dois livros tiveram direitos de adaptação para o audiovisual negociados. Apague a luz se for chorar já está em estágio de pré-produção pelo diretor Flávio Ramos Tambellini, com previsão de começar as filmagens no fim deste ano — eu devo receber em breve pela cessão definitiva dos direitos, uma grana que será libertadora e me permitirá reduzir o ritmo de trabalho um pouco. Como se fosse um monstro está nas mãos de duas roteiristas incríveis, Patrícia Andrade e Ângela Chaves (Patrícia escreveu Dois filhos de Francisco e Nise, entre outros filmaços; Ângela é autora do sucesso da Netflix Pedaço de mim). Os direitos do Monstro foram a leilão, o que significa que havia mais de um interessado. Reza a lenda que já tem gente de olho no meu terceiro livro, o que está na editora e ainda nem tem previsão de lançamento.
Imagina se eu tivesse aceitado as migalhas que me jogaram lá atrás?
Todos os dias busco reafirmar essas verdades para mim mesma: existe valor naquilo que eu sei fazer. Não é fácil, envolve mexer em um enorme vespeiro de crenças limitantes, essa confiança não é algo ensinado para quem vem de onde eu vim. Mas é uma confiança necessária e urgente para fazer nossa carreira andar.
É um mantra cotidiano a ser recitado bem baixinho: os artistas importam. Os artistas são gente trabalhadora. Se a gente não se der valor, vai por mim, quem está no topo também não vai fazer isso. Na hora de negociar seu futuro, não aceite qualquer coisa. A sua criatividade vale muito.
“Um vespeiro de crenças limitantes” - é bem isso mesmo! Que texto! ❤️
como é perverso esse truque de que a "divulgação" será recompensadora no futuro...