
Minha Isabel entrou com tudo no terreno da linguagem. Já fala e compreende muita coisa. Compreende tanto que às vezes precisamos fazer malabarismos sintáticos para que ela não reaja com suas vontades imediatistas. Se falamos “picolé”, por exemplo, ela já corre para a geladeira, mesmo não sendo ainda a hora do “quequé”. Para driblar uma birra homérica às sete da manhã, muitas vezes recorremos a sinônimos ou mesmo frases que fazem com que eu me sinta falando sobre o Voldemort: “o feijão está perto daquele negócio gelado que não podemos dizer o nome”. Também é interessante ver como ela cria seu dicionário próprio. Passamos dias tentando entender por que batizou sua chupeta de “mi”, até que a babá elucidou o mistério — é que ela usa para dormir. Faço uma lista de tudo que ela fala errado de um jeito incrivelmente fofo e como quase todos os pais sei que vou sentir saudade quando começar a acertar os fonemas. Mas ainda é cedo, não preciso me preocupar com o tempo escorrendo pelas paredes. Posso apenas apreciar o privilégio que é ser chamada o dia inteiro de mamãe.
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Para uma escritora, questões de vocabulário importam muito. Eu só consigo existir nomeando. Sou como o Manoel de Barros, vivo em estado de palavra. No hospital, depois de ganhar a Cora, elegi uma nova favorita: apojadura. Fiquei provando o gosto dela nos lábios, é uma palavra gostosa e leitosa como supõe-se que seja o significado. Ganhar a Cora, aliás, é outra expressão muito competente. Quanta coisa eu recebi em apenas um mês.
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Guardo também o jeito como a minha avó fala. Para ela, ninguém vai a lugar algum com outra pessoa — vai “mais” ela. Eu amo essa forma de se somar ao outro, a matemática goiana que me encanta toda vez que escuto. A cadência da fala dita caipira é de uma poesia enorme. Eu perdi um bocado dela, mas é só voltar para casa que “alembro”.
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Se a Cora tiver um filho um dia como vai ser o nome dele? — pergunta o João, com o sorrisinho sem vergonha de quem vai fazer mais uma de suas piadas ruins.
Corão? — arrisco.
Corason.
(Até que essa foi boa.)
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Muitas pessoas dizem, e eu concordo, que para escrever é preciso ter um jeito único de olhar o mundo. Mas também envolve saber escutar.
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A realidade é forjada pela linguagem. Sem linguagem não é possível se reconhecer. Sou fascinada pela forma a língua ajuda a entender conceitos como a morte, o universo e o próprio tempo, o que faz com que as perspectivas mudem conforme o idioma. Como é o caso dos Aymara, a tribo indígena dos Andes que enxerga o passado como algo que está à frente e o futuro atrás — o que já foi, afinal, pode ser visto, o que ainda está oculto fica sempre rondando às costas. Aposto que nesse lugar ninguém aposta corrida consigo mesmo, porque não é possível correr de algo que está colado em seus calcanhares, é só viver e registrar o que passou, quando passar.
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Ser mãe me trouxe clareza de como a vida é assombrosa. Penso que ainda ontem eu tinha um bebê de três quilos e meio dentro de mim e agora o meu corpo já está quase inteiramente recuperado, todos os pedaços onde deveriam estar, a carcaça quase de volta ao formato original. Abdicar do meu tempo e das minhas prioridades para fazer outro ser humano (dois!) me devolveu a um estado primitivo e ao mesmo tempo evoluído, acho até que a minha mente ganhou uma outra camada de percepção, o que faz com que seja difícil descrever o que ando manifestando. Pela primeira vez senti insuficiência no português. A palavra amor tem pouca possibilidade. Só dizer que é amor não basta.
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Claro que estou exausta, cansada a ponto de ter alucinações. Ontem mesmo esqueci que botei a menina no berço antes de me deitar e acordei assustada, achando que estava no meu colo e eu tinha deixado cair. E também sinto muita solidão. Não tenho muitas amigas mães, minhas amigas não são mães por escolha ou circunstâncias pessoais, e é difícil não ter com quem compartilhar esse repertório denso de novas palavras, uns substantivos azedos que só outras mães vão entender, como os termos higiene natural e disquesia (que acompanham 90% das minhas pesquisas ultimamente). Estou em um trem, minhas amigas vão passando por outro. Por isso recorro às companheiras virtuais. Elas sempre me lembram que ser mãe é difícil mesmo, por que não seria? Você constrói um corpo com o seu e depois precisa ensiná-lo a receber a consciência. Consciência que vem de muitos jeitos. É uma língua inteiramente nova para aprender. Dos dois lados.
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Penso que faz o maior sentido que, no caso das pessoas bilíngues, o idioma principal seja chamado de língua materna. É o seu berço de significado, a forma como você aprende a registrar o mundo, por isso é tão difícil se expressar por completo em outro idioma, ainda que o domine, ainda que seja fácil dominar. Não dá para conjurar o feitiço da infância com palavras de outro povo. Uma língua materna tem o som da própria memória. São como uma roupa que você só consegue colocar uma vez.
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Um dia li em um livro que imigrantes e refugiados, quando estão morrendo, voltam sempre a falar a própria língua, não importa há quanto tempo estejam fora de casa. Achei bonito. Morrer é muito íntimo para fazer isso usando a roupa dos outros.
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Apojadura. Que palavra perfeita.
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[…]
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a voz
dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos
O verbo tem que pegar delírios.
[…]
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de uma cobra de vidro mole que fazia uma
volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta se chama
enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros em Uma didática de invenção
Fabi, que preciosidade de texto. Você fez uma colcha de retalhos tão bonita aqui que a sensação é que daria pra continuar tecendo ela infinitamente. Pano pra manga.
Quando nasce um filho nasce com ele uma linguagem/língua nova e isso é coisa que tem me apavorado e encantado na mesma medida, inacostumável
Queria indicar um livro que li recentemente, que me fez brisar muito nisso tudo, se chama Léxico Familiar, a autora conta sobre a própria vida trazendo a tona todo jeito de falar/expressão da própria família. Se costura todo em cima disso.
Desde então não paro de pensar no léxico familiar que surgiu aqui desde que Jorge nasceu, e o da família que vim, também, que muitas vezes se estende a minha de agora. Toda família tem um idioma próprio que perde e ganha palavras a medida que as pernas dessas crianças crescem
Nada tão nosso quanto nossa língua
Minha filha chamava chupeta de 'pitoulo' e não entendi de onde veio esse nome 🥹.
As palavras que as crianças falam são demais. Um dia minha filha deixou escapar "bigo" que ela quis dizer umbigo. Daí fui corrigi-la e ela perguntou: e quem tem dois bigos? 😅😅😅