Há alguns meses, comecei a pegar alguns serviços de leitura crítica, entre as mil e uma ocupações da minha lista. Embora tenha uma capacidade limitada, essa é uma das atividades que mais gosto de fazer. Ajudar outras pessoas a construírem seus romances é uma habilidade que venho exercitando de forma informal desde que comecei a desenvolver os meus projetos. Posso ser uma escritora em início de carreira que ainda tem muito a aprender, claro, mas antes de tudo sou uma leitora. Como leitora que também escreve, consigo identificar de cara algumas armadilhas conhecidas.
Escrever um livro não é fácil. A pessoa pode até ter uma certa familiaridade com as palavras, mas o fato é que o desenvolvimento de um romance exige uma certa dose de coerência e compreensão de estruturas narrativas, e as dificuldades só aparecem depois que o pensamento é desenrolado. Como o nome já diz, a leitura crítica serve para avaliar a primeira versão de um livro com uma perspectiva profissional, apontando o que funciona e o que ainda precisa melhorar. Não é como entregar seu manuscrito para um amigo, alguém que diria somente “gostei” ou “não gostei”. Leitores críticos sabem apontar exatamente o problema e até sugerir algumas soluções. Ou pelo menos deveriam saber.
Ao contrário do que muita gente imagina, os livros ganham várias versões antes de chegar às livrarias, isso é o que significa editar. E eu desconheço quem seja tão bom a ponto de produzir uma obra-prima de cara – até escritores mais experientes fazem alguns ajustes ao longo do caminho. É do jogo esbarrar em contradições, metáforas imperfeitas e os famosos clichês. É do jogo cortar, reescrever e remendar. Pensando nisso e na minha experiência, fiz uma listinha de aspectos técnicos que podem ser armadilhas para o sucesso de uma história, principalmente para quem está “começando”.
Disclaimer: não sou profissional de letras, sou apenas uma mulher que escreve (e não é de hoje).
Tempo verbal
Esse é um deslize dos mais clássicos. É possível ter dois tempos verbais em um livro (capítulos que são narrados no passado, por exemplo, e se intercalam com outros no presente), desde que isso seja intencional. Quando falo de passado e presente, estou falando da ação verbal em que a narrativa é desenrolada. Ou seja: em alguns casos o personagem foi, fez, viu... Em outros ele vai, faz, vê. Parece simples, mas muita gente se enrola na hora de manter a consistência. Começa a história no presente, de repente passa para o pretérito, ou o contrário. Há formas de justificar isso caso seja de propósito: se temos narradores confusos ou não confiáveis, digamos, ou se o personagem é um viajante no tempo ou um alienígena com outra percepção temporal. Na maior parte das vezes, contudo, trata-se de um erro de percurso que salta aos olhos.
Outro problema que aparece é na hora de exercitar o famoso pretérito mais-que-perfeito, aquele passado que veio antes do passado recente. Confesso que não gosto dele (como são feios os verbos conjugados assim: “falara”, “acontecera”, “entregara”, meu jesus). Prefiro utilizar os amigos “havia acontecido”, “havia dito” ou “tinha entregado”. É chato, eu sei, mas não dá para esquecer que ele existe. E precisa ser utilizado de forma correta.
Vício em metáforas
Meu sonho é abrir um café-livraria chamado Metáforas Baratas. O cardápio seria inteirinho composto delas. A metáfora talvez seja a primeira paixão de uma pessoa que escreve. É quando conseguimos acessar essa figurinha de linguagem que nos sentimos assim muito escritores. E é irresistível pensar em imagens, descrevendo o farfalhar de uma cortina como a asa de um gafanhoto, ou o olhar de uma mulher como um espelho de mágoas. O problema é que isso vicia e é muito fácil perder a mão.
Uma metáfora, se bem colocada, abrilhanta um texto. Mas, se for do tipo batida, é só uma expressão de cansaço. Dizer que algo “brilha tanto quanto o sol”, que a noite “cai como um véu”, que uma dor “chega em ondas”, ou que alguém parecia “uma borboleta saindo do casulo”, por exemplo, é contribuir com essa rica história do mais do mesmo. Se for fazer, faça direito. Vá além do óbvio e do lugar comum.
Mesmo as boas metáforas podem cansar o leitor, quando utilizadas em excesso. Outro dia comecei a ler um livro nacional (e é óbvio que eu não vou contar aqui qual foi) que tinha uma história muito interessante e me atraiu logo nas primeiras linhas. Mas a pessoa que escreveu, embora seja muito talentosa, exagerou tanto nas metáforas que eu não consegui seguir adiante. Eram boas metáforas. Pena que enchi o saco.
Clichês
De mãos dadas com as metáforas e os adjetivos, vêm os clichês. Ninguém aguenta um texto carregado deles. E sabe quem é o mestre disso? O ChatGPT. Como a ferramenta se alimenta dos milhares de livros escritos ao longo dos séculos, ela escreve como um escritor ruim. Eu pedi que a IA escrevesse um parágrafo literário sobre uma mulher acordando em São Paulo em uma manhã de sol. Veja o que ela me entregou:
“Era uma manhã resplandecente em São Paulo, a gigantesca metrópole despertava com o canto dos pássaros escondidos entre as árvores de suas avenidas. Em meio a selva de pedras, Marta acordou, com a luz do sol, ainda tímida, se insinuando através das persianas da sua janela. A cidade, apesar de seu pulsar constante, parecia lhe conceder uma trégua, um breve momento de paz antes do início da agitação cotidiana. Ainda no limiar entre o sono e a vigília, ela espiava o horizonte desenhado entre arranha-céus, tingido por tons de laranja e rosa do amanhecer, e o contraste entre a beleza serena do céu e a dureza das linhas urbanas lhe trazia um sentido peculiar de pertencimento.”
Tem tantos clichês nesse parágrafo que eu não preciso nem apontar, vocês sabem quais são. A visão de uma manhã resplandecente, a gigantesca metrópole, a selva de pedras, a luz que se insinua nas persianas, o pulsar da cidade, o limiar entre o sono e a vigília... Tudo isso são expressões desgastadas. Ao escrever, não sejam um ChatGPT da vida.
Tenho uma boa dica para evitar o clichê. Sabe aquele joguinho contexto, em que você tem que descobrir uma palavra por associação? Pois bem, o clichê nada mais é do que uma associação óbvia. Ao pensar em diamante, a mente pensa em cravejado. Ao falar da lua, a cabeça puxa um brilhante. Fuja das associações óbvias que é meio caminho andado. Jogue contexto ao contrário!
Repetições
Esse é outro clássico que a gente não pensa muito a respeito quando está escrevendo. O fato é que algumas palavras são ferramentas muito utilizadas, tão utilizadas que às vezes precisam de substitutos, senão saem piscando no texto feito semáforo quebrado. Estou falando dos pronomes, de conectivos como o “que”, de conjunções como o “mas” e “no entanto”, entre outras. Um texto fluido e bem escrito sabe dançar em várias instâncias e vocabulário nunca é demais. Quando escrevo, sempre reviso para ver se não repeti demais alguma palavra, é de lei (menos aqui na newsletter, que sou mais relaxada). Em casos de emergência, recorro ao bem-aventurado site de sinônimos, o salvador da pátria.
Dica de leitura
Eu poderia ficar horas escrevendo aqui sobre outros vícios comuns de escrita, mas o Substack tem limite. Para quem quer se aprofundar mais, recomendo a leitura do livro Lugar das palavras, que acabou de ser lançado pela Vanessa Ferrari, que é uma gênia absoluta da edição e leitura crítica. Nesse livro, ela foca na questão dos narradores, e eu gostei muito.
Antes de fechar a porta...
Conforme antecipei, as edições gratuitas das Tristezas de estimação agora são quinzenais. Os assinantes pagos, no entanto, recebem toda semana textos específicos sobre mercado editorial e mais dicas de escrita. Custa R$ 9,99 ao mês. Na última semana, falamos sobre os números de venda de livros nacionais. Na próxima, devo abordar o tópico da publicação (tentando responder a malfadada pergunta: como publicar um livro?). Assine aqui.
Tem vaga?
Caso tenham interesse em fazer uma leitura crítica comigo, me escrevam para pedir o orçamento, contando um pouco sobre o projeto de vocês: fabiane.c.guimaraes@gmail.com. Estou com poucas vagas para julho e agosto, então dou prioridade para quem chegar primeiro.
Desespero do vício em metáforas. Fico me segurando e mesmo assim me escapam umas horrorosas. Não sei se é a influência de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, mas me parece que a tentação da metáfora é muito maior na literatura brasileira.
Quantas dicas preciosas, Fabi. Agradecida demais. Tem tantos errinhos que a gente comete sem perceber e que empobrecem a nossa escrita, né? Depois de tantos anos escrevendo, eu estou mais ligada, mas vez ou outra, confesso, ainda me pego dando umas escorregadas de principiante.