Pode soar um tanto esquisito, e é uma verdade vergonhosa de se admitir, mas eu não gosto de estudar. Gosto muitíssimo de aprender, não me entenda mal, e aprendo coisas novas quase todos os dias, só não tenho paciência para salas de aula. Nunca sequer cogitei uma carreira acadêmica, até hoje nem sei como concluí minha graduação em jornalismo. Por outro lado, nunca tive problemas com livros. Pensando bem, acho que não me dou bem com salas de aula pelo mesmo motivo que não curto podcasts e longos tutoriais em vídeo – minha memória visual e auditiva é uma porcaria e quase sempre prefiro ler. O texto é a minha mídia favorita. Foi lendo que aprendi tudo. Até a escrever.
Apesar de achar que oficinas de escrita e cursos literários em geral são investimentos maravilhosos por vários motivos, não acredito que escrever ficção seja essa coisa possível de ensinar a qualquer pessoa. Claro, se você já escreve ou tem vontade de escrever, é possível aperfeiçoar a técnica, melhorar o arcabouço formal e aprender aspectos importantes da estrutura e do desenvolvimento de um romance. Acima de tudo, no entanto, escritores precisam contar com um desvio de alma imprescindível para a atividade. Sem um certo componente de sensibilidade, o esforço cai por terra.
Aos que não possuem pelo menos um pezinho no calvário sentimental das palavras, uma pequena tendência a se perder na imaginação, qualquer método será inútil. No máximo, sairá um texto correto e sem emoção, como uma parede cheia de tijolos certos que não se encaixam direito, na mesma qualidade dos textos cuspidos pelo ChatGPT.
Percebam que não estou falando aqui de habilidade, e sim de espírito. Ser escritor vai além da capacidade técnica, até porque técnica é uma coisa que se aperfeiçoa com o tempo. É o elitismo da sociedade brasileira (como sempre) que por muito tempo pregou, e ainda prega, a sofisticação da linguagem como parâmetro máximo e divisor de águas do que é ou não a boa literatura. Sou radicalmente contra esse discurso. Acho que o conhecimento e a riqueza formal não determinam de forma alguma os melhores escritores. Pelo contrário. Algumas pessoas podem até ter um arsenal vistoso de palavras, mas outras possuem calombos no peito. Entre ambas, prefiro ler sobre os calombos.
A esse respeito, é celebre o diálogo entre Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, registrado em uma matéria escrita por Paulo Mendes Campos: “Como você escreve elegante”, Carolina teria dito a Clarice, que rebateu: “E como você escreve verdadeiro!”.
Os livros que ensinam a escrever
Quando acontece de me pedirem indicações de manuais de escrita, a tela azul bate forte. Quase sempre recomendo o Como funciona a ficção, do James Wood, ou o Escrever ficção, do Luiz Antônio Assis Brasil, que são dois livros ótimos. Meu conhecimento acaba por aí. Meus livros preferidos de não ficção que tratam da escrita em si não são exatamente manuais, mas reflexões sobre a escrita literária com algumas dicas no meio do caminho. Amo o Grande Magia, da Elizabeth Gilbert, e o Sobre a escrita, do Stephen King, entre outras preciosidades.
O melhor livro para aprender a escrever, no entanto, é aquele que causa assombro. São os grandes romances, os romances que mexem com a gente, que despertam o escritor ou escritora adormecida. Histórias assim, independente do gênero ou da “classe” a que pertencem, nos fazem cutucar os próprios calombos. A partir daí, a transição se faz a um passo. A leitura nunca mais será a mesma. Quando pessoas comuns leem algo muito bom, por exemplo, a tendência é que pensem “nossa, que livro bom”. Quando eu leio algo que acredito ser muito bom, penso “nossa, que aula”.
Sempre achei um mistério a existência de leitores que não são escritores. Para mim, as duas atividades nasceram juntas. Minhas leituras alimentam minha escrita, e uma está permanentemente contaminada pela outra, de forma que as coisas que me interessam na ficção quase sempre são aquelas sobre as quais eu também quero ou já quis escrever. Livros sobre morte, velhice, solidão e maternidade, por exemplo, ganham vários pontos comigo por motivos óbvios e não é por acaso que são coisas abordadas nos meus dois livros publicados. Ultimamente, ficções científicas tristes e filosóficas são as leituras favoritas – uma dança que estou ensaiando há tempos.
Da mesma forma que os livros maravilhosos ensinam muito e despertam aquela “coceirinha” de escrever, os ruins também são ótimos professores. O Alan Moore fala sobre isso nesse vídeo maravilhoso. Ele diz: “[...] Eu recomendo que vocês não leiam apenas os livros bons, leiam livros terríveis também, porque eles podem ser mais inspiradores do que os bons livros. Se você fica inspirado por um livro, tem sempre o risco de plágio, de fazer algo muito parecido com aquilo, enquanto uma reação à leitura que genuinamente ajuda é pensar ‘Jesus amado, eu poderia escrever esta merda’. Isso é muito libertador, achar alguém que é publicado e está fazendo algo muito, muito pior do que você faz. Ao analisar o que eles estão fazendo de tão ruim, isso vai ajudar muito seu próprio estilo, você vai encontrar todos os erros que não deve cometer [...]”.
A despeito do julgamento de valor pessoal – afinal, todos temos um conceito do que é bom, já escrevi sobre isso aqui antes – eu concordo com o Alan Moore nessa. É importante ler de tudo e entender as coisas que você não gosta. Sobretudo, é preciso saber por que você não gosta. Não basta dizer “achei clichê” ou “esse autor escreve mal”. Qual, exatamente, foi o lugar comum que te irritou? E qual é o recurso estilístico utilizado pela pessoa que não agradou? Elabore suas respostas e entenda que elas determinam o que você não quer fazer.
Eu tenho uma pilha gigantesca de livros nacionais e estrangeiros que li nos últimos meses e não me agradaram. Sei o motivo pelo qual interrompi, ou concluí com desgosto, a leitura de cada um. Na maioria dos casos, tem a ver com uma busca pessoal. Os leitores-escritores são ainda mais críticos do que a média, porque estão sempre se alimentando com os olhos de quem conhece a cozinha. Por isso mesmo, não costumo jogar shade ou falar mal de nenhum desses trabalhos dos quais desgostei exceto quando tenho ranço, aí falo mal em privado hehe.
Escrever um livro é algo muito difícil e ninguém consegue agradar a todos. Ao longo dos anos, aprendi a reconhecer quando um romance é excepcionalmente bem escrito, mas não reverbera em mim. Conheço a natureza dos meus interesses. E aprendi a identificar as falhas de um romance que considero mal escrito e também mal editado, porque é verdade que uma boa edição pode fazer milagres. Da mesma forma, quando leio algo que me surpreende e faz meus olhos brilharem, logo busco entender a razão. Primeiro sinto, depois tento entender. É um mistério bonito de contemplar. Minhas melhores professoras são essas autoras – mais do que os autores – que vieram e escreveram antes de mim.
Antes de ir embora...
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Que texto! Você sempre muito incrível ao escrever sobre escrita, talvez nem saiba que está me ensinando tanta coisa, Fabi.
Guardo todos os que vão me ajudar na escrita, pois estou escrevendo um humilde livro. Espero um dia poder vir aqui e dizer "escrevi meu livro, vou publicar!" hehe
Oi, já li esse texto umas 3x e sempre me deparo encontrando mais inspirações nele. Chega a ser chato, rsrsrs parece até que não li o texto todo.