Na última edição de sua newsletter Dentes guardados, o escritor Daniel Galera refletiu sobre influência literária, que às vezes vem de forma declarada e em outras é mais discreta. Galera cita a importância de Cormac McCarthy para David Foster Wallace e também fala sobre o livro A mais recôndita memória dos homens, do senegalês Mohamed Mbougar Sarr, um lançamento da editora Fósforo que é inspirado no trabalho de Roberto Bolaño (infelizmente, só consegui ler até a metade, por aqui não somos muito fãs de Bolaño, podem me apedrejar). O texto dele me fez ficar pensando sobre minhas próprias referências literárias, e como elas influenciaram o que faço hoje.
Como o próprio McCarthy dizia: “books are made out of books”. As primeiras tentativas de escrever começam emulando o estilo de alguém. Eu me lembro que, na infância, todos os personagens das minhas histórias sofríveis tomavam café da manhã com ovos e bacon, o que era uma óbvia referência a J.K Rowling e outros autores gringos que eram minha única fonte de leitura na época. Na minha casa, nunca comíamos ovos e bacon de manhã, é claro. Nossa primeira refeição era à base de pão francês, manteiga, pão de queijo e café com leite, como na maioria dos lares brasileiros. Mas isso não entraria em uma história. Eu ainda não sabia que a ficção podia refletir de alguma forma o meu cotidiano.
É normal se dedicar à leitura do que se gosta, e tentar fazer algo parecido com aquilo é uma forma de devoção. O desafio é ir além da cópia, superar o ídolo, e fazer da referência apenas um ponto de partida. Encontrar o que é nosso pode ser traumático, um pouco trabalhoso, mas no fim das contas acho que é a linha capaz de dividir os bons dos maus escritores. Depois de pescar essa voz narrativa que com o tempo acaba se tornando muito familiar, escrever vira um processo tão confortável quanto vestir uma roupa macia e velha. Vai por mim.
Como todo o resto, no entanto, chegar a si mesmo é um processo. No começo imitamos, feito as crianças imitam os adultos para aprender a viver. As referências deixam marcas. Eu, por exemplo, fui fascinada por muito tempo pela literatura policial, e autores como Agatha Christie, Fred Vargas e Conan Doyle escavaram em mim uma vocação insistente para o mistério. Ainda que eu não escreva propriamente um policial, sou acometida por uma febre da surpresa, quero seduzir o leitor, quero carregá-lo sem que ele sinta para onde estamos indo. Deve ser por isso que o adjetivo que mais usam para descrever a minha escrita em resenhas e avaliações seja “fluido”. Não me incomodo com isso, o oposto: sempre fui atraída por parágrafos que deslizam nos olhos.
Também tive referências mais formais de linguagem, no entanto, se é que posso dizer assim. Fui encantada por Guimarães Rosa, o homem que inventava as expressões mais bonitas do mundo, e também devo muito a Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Adriana Lisboa e Inês Pedrosa. Com essa última, foi caso de paixão. Uma vez me convenci, inclusive, que queria escrever exatamente como escrevia a portuguesa, até perceber que não tinha talento para tanto lirismo.
A verdade é que a gente aprende com os autores de antes. Eu com certeza aprendi a escrever contos com Alice Munro e Lygia, minhas duas contistas favoritas, e mais recentemente caí de amores pela Shirley Jackson. E as referências mudam o tempo todo, como a própria vida. Acho que meus dois livros publicados bebem muito de várias fontes que me acometeram na época, inspirações ligadas aos pensamentos fermentados ali, mas se você me perguntar o que eu gostaria de fazer agora, o que penso em fazer, poderia dizer que ando meio obcecada pelo Kazuo Ishiguro (Os vestígios do dia e Não me abandone jamais estão entre meus livros favoritos da vida), pela Samanta Schweblin e o Ted Chiang. Quero muito sair da caixinha do realismo, e eles me ensinam como.
É quando superamos a inspiração que acessamos de verdade o conforto da própria identidade. Não há mais o medo de estar “plagiando sem querer”, ou de soar como uma cópia falsificada, porque estamos pensando sozinhos, e cultivando histórias a partir de percepções pessoais. Nesse aspecto, convém abandonar os ideais de grandeza. Eu gosto muito de livros bonitos, livros poéticos e densos, mas preciso me contentar com o fato de que o meu raciocínio não acessa certas doçuras. Jamais serei Clarice, jamais seria Virginia. Da mesma forma, posso dar as costas ao gênero e me entregar em definitivo à ficção literária, esse lugar tão respaldado pelos galardões, mas a verdade é que sempre vai caber uma reviravolta nas minhas histórias, e talvez os literatos sérios não gostem disso. Eu escrevo de um jeito fácil e admiro quem também escreve assim (ao Zambra e Jazmina Barrera, toda minha devoção).
Também guardo um certo cansaço de figuras premiadas e carimbadas que todo escritor acha que deve reverenciar. Precisei de algum tempo, mas foi libertador quando entendi que ser quem a gente é também passa por assumir do que a gente não gosta. Está absolutamente permitido não gostar de McCarthy, por exemplo, que descanse em paz. De todos os livros dele que li, ou tentei ler, só fui cativada por A estrada (e esse figura entre os meus romances favoritos da vida, vai entender).
No fim, acho que as afinidades são muito pessoais, muito íntimas, e o jeito como escrevemos pode não ser perfeito ou elevado como gostaríamos, mas que seja pelo menos verdadeiro. A única forma de transformar o que já existe é aportando o inédito da própria existência. Produzir arte talvez seja isso: sentar à mesa e contribuir com um debate iniciado por quem veio antes, usando o próprio repertório como continuidade da inspiração. Quem sabe a gente também não vira a referência de alguém?
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escrever fácil é mais difícil do que escrever difícil e fluidez não é pra qualquer um. adoro ser do time dos que leem e tentam escrever fácil e fluido <3
Era o que uma humilde aspirante a escritora precisava ler neste dia. Obrigada!