Quando comecei a escrever ficção, achava que os personagens de uma história eram apenas um veículo, uma parte acessória, que contavam com um nome e um destino elaborado para servir ao todo. Lembro que me preocupava muito com as características físicas de cada um: as mulheres costumavam ter olhos “amendoados” e cabelos compridos que caíam “como cascata”, “emoldurando” seus rostos. Os homens eram altos, fortes e “de ombros largos”. Quase todos eram brancos, a maioria tinha olhos claros. Para além das referências obviamente colonizadoras, foi muito importante perceber que os personagens eram mais do que atores imaginários representando um papel na cabeça do leitor. É muito fácil atribuir um rosto, ou um corpo, para quem está habitando a história. Louco mesmo é inventar uma alma.
Hoje em dia, acho que sou essencialmente uma escritora de personagens. A trama dos meus livros sempre parte de um conflito humano e familiar. É importante reconhecer as próprias fraquezas, quando se trata de escrita, mas também os pontos fortes, e acho que sou boa em fabricar pessoas. Amo definir um caráter (quanto mais dúbio, melhor). Sou especialmente fascinada por personagens controversos. Acho que toda pessoa é feita de nuances, ninguém é sempre ruim ou bom, e compreender isso ajuda a encher uma ficção de vida.
Isso foi bem forte durante a escrita do Como se fosse um monstro. Toda a ideia do livro foi construída em torno dessa mulher que é uma barriga de aluguel, mas quando Damiana apareceu, eu soube que não queria que ela fosse o que esperassem dela. Nem uma vítima, nem uma vilã. É possível ter empatia por uma mulher que gera bebês feito máquina, e os entrega sem a menor sombra de remorso? Esse era meu desafio pessoal, o motivo que me levou a escrever o livro inteiro. A humanidade é um poço de complexidades, e é a elas que eu sirvo.
Parte do que me incomoda na ficção literária brasileira hoje é justamente a ausência dessa percepção. Às vezes me parece que o público leitor busca o contrário. Quer personagens planos, que façam sempre as escolhas certas e jamais contrariem uma certa bússola moral. Por mais progressistas que alguns leitores se declarem, esse tipo de comportamento é conservador até a medula. A recente onda de censura só confirma uma tendência ao conservadorismo nas letras, coisa que repudio. Seja qual for o espectro político da pessoa, a literatura não está aqui para servir a uma ideologia e edificar o espírito. Essas coisas funcionam nas fábulas, nos contos com lição de moral. Para o resto, é preciso exercitar os pontos de vista. Caso contrário, corremos o risco de nos deitar para a construção de caricaturas.
Passei por um caso curioso quando publiquei meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar. É que um dos personagens principais, o João, é um sujeito assim multidimensional. Pai solteiro de um menino com paralisia cerebral, logo nas primeiras páginas somos apresentados aos becos sombrios de sua mente. Ele compara o filho aos cachorros da clínica onde trabalha e imagina sua morte – o que é ainda mais delicado porque seu trabalho no centro de zoonoses envolve o sacrifício de animais. Alguns leitores me acusaram de ser capacitista, como se fosse eu, e não o personagem, que pensasse daquela forma.
João é um dos meus personagens favoritos porque ele é complexo como as pessoas são complexas. Ao mesmo tempo em que flerta com a escrotidão e a barbárie, ele é um cara aprendendo a ser pai. Alguém que faz tudo pelo filho, como a própria trama vem a confirmar. Eu me orgulho de ter criado esse personagem. Ele é alguém que poderia existir – para mim, ele já existe.
Foco no detalhe
Uma dica que sempre dou em oficinas é olhar para o mundo com cuidado, reparando nos detalhes. Na minha vida pessoal, sou uma catalogadora de personalidades. Gosto de perceber, em particular, as excentricidades que marcam cada pessoa, sobretudo aquelas que amo. O meu pai, por exemplo, tem o hábito de tecer longos monólogos sobre a vida, em geral seu próprio passado, sem deixar muita contribuição aos interlocutores. Minha mãe é uma senhora ansiosa que está sempre tentando fazer com que ele fale menos. Um dos meus melhores amigos tem a mania de roer a unha do polegar quando está concentrado. Outra amiga, estilista, costura as melhores fantasias para o Carnaval.
Meu marido anda pela casa ouvindo programas de comédia e soltando risadinhas pelo nariz que sempre me lembram o Mutley.
Minha irmã não consegue ver um filme em silêncio.
Esses são apenas exemplos do meu cotidiano, porque também coleciono a vida de estranhos. Uma vez conheci, na balada, um cara que tinha 15 sobrenomes (ele me mostrou o RG para provar, era um nome com três linhas). Já frequentei uma maquiadora que também é policial civil, e me diverti quando ela me contou que havia prendido os maridos de algumas clientes. Quando estava construindo minha casa, fui apresentada a um senhor de idade bem magrinho que era a maravilhosa combinação de mestre de obras, serralheiro, marceneiro, eletricista e escritor.
Todas as pessoas do mundo real são um mundo de detalhes.
Por que os personagens não seriam?
São os detalhes, inclusive, que convencem. Você pode dizer que alguém tem olhos escuros e sobrancelhas grossas, mas se você disser que uma de suas sobrancelhas é atravessada por uma cicatriz, e que essa cicatriz foi causada por um acidente na infância envolvendo uma garrafa de Baré, isso ficará gravado na memória do leitor. Da mesma forma, a conduta de um personagem pode ser justificada por algo que seja crucial para o desenrolar da trama. Se a sua protagonista tem medo de sair na rua, você pode descrever detalhadamente como esse medo surgiu.
Quem são as pessoas que habitam as suas histórias?
Elas gostam de cachorro, dançam mal, têm inveja? São mesquinhas, cruéis, secretamente odeiam gente velha?
Vale tudo para enriquecer o negócio, o que não vale é esculpir um alecrim dourado.
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Que texto inspirador! O mundo real está repleto de personagens. É um ato de coragem criar personagens humanos que revelam quão complexos somos, indo além da superficialidade esteticamente limpa de vícios e comportamentos imorais.
Depois desse texto, Fabiane, não podia mais deixar de assinar a sua newsletter. Você conseguiu ser certeira! Obrigada por compartilhar.