Na semana passada, a nossa Taylor Swift da literatura, Sally Rooney, anunciou um novo romance para setembro. Conforme a breve sinopse divulgada, o livro, que será publicado no Brasil pela Companhia das Letras, é sobre dois irmãos lidando com o luto pela morte dos pais. Fui correndo ver se descobria mais coisas a respeito e me deparei com essa pérola aqui, sobre a qual até postei no Notes. Na matéria, a reportagem questiona a editora para saber como a autora teve essa ideia, já que seus pais ainda estão vivos. Eu quase tive um treco. A autoficção anda tão em alta que, pelo visto, ninguém mais acredita no nosso poder de imaginar.
Como já escrevi por aqui, nem toda experiência de vida vira literatura, e vice-versa. É perigoso subestimar a criatividade de um escritor a esse ponto. Sou fã de Sally Rooney, por exemplo, e só de ler a sinopse de Intermezzo sei que esse romance é profundamente dela. Não só porque traz o clássico “dois personagens lidando com relacionamentos conturbados e crises existenciais”, como também porque um deles é jogador de xadrez. Minha amiga Sally adora xadrez. Como sei disso? Bom, já li praticamente todas as entrevistas que a companheira irlandesa se dignou a conceder na vida, e ela já mencionou em algumas delas o gosto pelo jogo. Um de seus hobbies, ao lado do marido John, é justamente jogar xadrez.
Isso, ao meu ver, é um ótimo exemplo de como nós temos ideias a partir das nossas vivências, sem, no entanto, contaminar a ficção com a autobiografia. É possível se interessar por alguma coisa, viver uma experiência, conhecer alguém interessante, e utilizar isso em nosso trabalho, mesmo que não seja um relato de ordem pessoal. Arrisco dizer que toda ficção é pessoal, afinal de contas parte de um olhar subjetivo. Os melhores ficcionistas, inclusive, são aqueles que conseguem narrar o próprio olhar a partir da invenção de terceiros. O resultado às vezes fica tão verossímil que os menos habituados ao poder da literatura podem até comprar como verdade. É assim que sabemos ter feito um bom trabalho.
Muita gente já me escreveu comentando que achou muito real a história da protagonista do meu segundo livro, Damiana. Alguns leitores disseram que foram até procurar no Google, e perguntaram se eu me inspirei em uma pessoa de verdade. Ora, claro que eu me inspirei em pessoas de verdade: as dezenas de mulheres que conheci na vida, incluindo minha mãe e minha avó, foram e seguem sendo minha matéria-prima. Mas a resposta concreta é que, não, nunca conheci uma barriga de aluguel, nem mesmo ouvi a respeito. Tudo que está no livro é inventado. Isso diminui a força do que estou contando? Acho que não.
Não há nenhum problema em escrever sobre a própria vida, deixo bem claro. O problema é achar que essa é a única forma de ter ideias. Já vi muitos escritores iniciantes tendo ataques de taquicardia por acharem que suas vidas são desinteressantes demais para servir de fonte – na maioria das vezes, elas são mesmo. A literatura brasileira já bebeu demais do relato de uma classe média urbana, branca e angustiada, diga-se de passagem. Não é porque você é uma pessoa ordinária, no entanto, que não possa ter ideias brilhantes. São as obsessões dentro das existências medíocres que produzem bons trabalhos.
De onde partem as obsessões?
Acho que boa parte delas vêm das próprias referências de livros, música e cultura em geral. Eu, por exemplo, fui obcecada por romances policiais, e meus livros carregam um pouco disso. Também gosto de obras tristes e melancólicas, e isso me leva a querer escrever histórias tristes e melancólicas. Outros interesses partem daquilo que construímos enquanto ser humano ativo no mundo, influenciados pelo espaço doméstico, pelo convívio com amigos, por professores, e até mesmo pelos estranhos. Levei algum tempo até perceber que gostava de escrever tramas familiares porque a família, no meu caso, ocupou e ainda ocupa um grande espaço na minha vida. Agora ando às voltas com uma personagem cartomante – estudo e jogo tarô, mas isso não significa que esteja escrevendo uma história sobre minha carreira frustrada de oráculo.
A melhor forma de encontrar uma ideia para escrever é buscar no próprio depositório de esquisitices. Construir personagens a partir do próprio repertório, sem se basear no que o mercado ou o público leitor supostamente gostaria de ler. Sally Rooney mora no interior da Irlanda, em uma casinha no meio do mato. O marido dela é professor, a vida dela é bem banal (apesar do sucesso absoluto). Tenho certeza que ela não fica no canto pensando meu deus eu só sou mais uma mulher branca de existência medíocre na hora de escrever, apesar de ser isso que ela é. Ela tem uma fagulha, um espírito contemporâneo de transmitir ideias, um jeito de olhar para os relacionamentos atuais, e é esse o seu verdadeiro talento. Ou, pelo menos, é do que eu e milhões de pessoas gostamos.
Se eu fosse me guiar pela minha experiência pessoal, estaria ferrada. Cresci na periferia de uma cidade goiana e quase toda semana um vizinho meu morria. Os tiros eram comentados com a mais absoluta banalidade, o tráfico de drogas acontecia na minha rua. Não me sinto à vontade para contar sobre essas coisas, só fiz isso no meu TCC para a faculdade, que foi um trabalho jornalístico. Isso porque, apesar de estar ali, eu não vivi aquela história. Meus pais trabalharam muito para me dar uma boa educação particular, não me deixavam sair de casa, e a experiência do confinamento foi muito mais forte do que a da violência. As minhas ideias saíam dos livros que eu lia, muito depois é que comecei a trazer um pouco das histórias que escutava.
Hoje em dia, bebo ainda menos das grandes “experiências”. Assim como a Rooney, moro no meio do mato – ontem, o acontecimento mais impactante do meu dia foi o meu gato ter encontrado uma cobra. Meu trabalho é home office, sou mãe de uma menininha de seis meses que consome quase todo o tempo livre, e saio muito pouco de casa. Até os meus amigos reclamam da minha ausência. Também não tenho viajado muito, apesar de amar fazer isso, e a escassez de dinheiro me diz que esse ano não deve rolar. Apesar disso, nunca estive tão criativa, nunca produzi tanto. Talvez seja a hora certa. Existe um espaço necessário para exercer a vida, como já escrevi aqui, e outro para criar. Estou nesse momento de criar, e estou criando muita coisa sobre meu momento. Mas o que vai sair daqui, lamento dizer, não será uma autoficção.
Perdi tudo na Taylor da literatura
Adorei a News. Sou doida pra escrever ficção, mas travo. Sempre travo. Talvez por me achar uma pessoa ordinária. Adorei o que vc escreveu sobre poder, mesmo assim, ter ideias brilhantes. Acho que o que me falta é isso: me aceitar e, mesmo assim, me permitir.