Uma das perguntas que mais recebo sobre meus livros é se os personagens são baseados em pessoas reais ou se vivi algo parecido para escrever assim com propriedade sobre tanta coisa triste. Acham que sou profundamente traumatizada (e sou, todo mundo é, mas nem tanto). É sempre complicado responder essas perguntas. Por um lado, acredito que toda ficção é criada a partir de um ponto de vista e, portanto, vai carregar as referências de mundo de quem a criou. Mas isso não significa que seja apenas um relato. Às vezes, parece que as pessoas abrem os livros esperando ouvir a voz de um dublador da Sessão da Tarde anunciando baseado em fatos reais. Porque, se é baseado em um fato real, então deve ser muito mais verdadeiro. A ficção pura, como uma ideia que só foi inventada, vai perdendo sua reputação, o que me deixa muito triste.
Não sei se é só impressão minha, mas tenho notado um aumento de interesse geral pela autoficção. Não me levem a mal, não tenho nada contra, até aprecio. Comemorei com gosto quando a Annie Ernaux venceu o Nobel e acho que, mais do que corajosos, os livros dela também são deliciosos. Para quem não está tão familiarizado, a autoficção é aquela literatura criada a partir da experiência pessoal – biográfica, sim, mas com uma licença poética para reescrever o passado ou o presente, pode ser um pouquinho ficcional, mas em geral parte de acontecimentos reais.
Dois dos melhores livros que li nesse ano, por exemplo, transitam entre o ensaio e a autoficção e dialogam entre si: Linea Nigra, da Jazmina Barrera, e Literatura infantil, do Alejandro Zambra. Dois livraços, de escritores extremamente talentosos que por acaso são casados um com o outro, e utilizam suas vozes para registrar as experiências da maternidade e da paternidade, que são banais e singulares ao mesmo tempo. O tipo de coisa que acontece com milhões de pessoas o tempo inteiro, só que algumas possuem a habilidade de contar como é. Nós, escritores, somos mensageiros da experiência humana. É muito próprio da gente saber descrever em palavras o que as outras pessoas apenas sentem.
Mas a literatura nem sempre vai estar ancorada nesse bloco pesado da realidade individual. Acho, inclusive, que a realidade não está dando mais conta de si mesma, que é cada vez mais difícil escrever sobre o nosso tempo, e em breve nós também precisaremos de outros instrumentos para reconhecer o próprio cotidiano. Além disso, nem todo mundo quer escrever sobre o que viveu, ou acha que tem material o suficiente para isso. Tudo que é visto, nossas lembranças, nossos pedaços de sentimentos espalhados pela bagunça da sala, essas coisas podem – devem – ser utilizadas na fabricação de outros mundos e personagens. Isso não significa que toda história estará ligada ao cordão umbilical da experiência.
Nunca gostei daquele conselho batidíssimo dos cursos de escrita criativa importados da gringa: escreva sobre o que você conhece. Sim, por um lado é muito importante envolver-se, utilizar as próprias referências, escrever a partir de um lugar. Mas acho que esse conceito de conhecimento é muito limitado, chega a ser mal elaborado. É possível escrever sobre o que não se conhece, afinal de contas? Se isso que fazemos é pura e simplesmente o reflexo de um cérebro que está o tempo inteiro interpretando o que recebe, como seríamos capazes de falar sobre o que não é? Enfim, divagações filosóficas à parte, eu gosto de uma alternativa para esse conselho. Algo mais palatável e atualizado, que não exclua o imenso poder da criatividade. Algo como:
Escreva sobre o que você imagina, a partir de quem você é.
Você não precisa ter vivido tudo que gostaria de narrar. Na verdade, um dos exercícios mais gostosos da literatura é justamente calçar os sapatos da empatia, vestir a pele de outro personagem, navegar por mundos que nunca serão visitados. Meu escritor favorito na categoria homem, Kazuo Ishiguro, é mestre em fazer isso. Tenho certeza que ele nunca foi o mordomo de um aristocrata, nem um clone, muito menos uma androide apaixonada pelo sol. O que não o impede de assumir a carapuça desses personagens, de revesti-los de uma profunda característica humana e soltá-los na nossa cabeça a ponto de pensarmos: sim, eles existem. E só existem porque alguém imaginou.
Não me incomodo quando acham que eu vivi o que os meus personagens viveram, nem que me perguntem se aquilo ali aconteceu de verdade. Isso significa que fiz um bom trabalho. Inventei, e a pessoa acreditou a ponto de se envolver. Essa é a minha missão de ficcionista. É claro que às vezes passo por certas situações na minha vida pessoal e imediatamente penso um dia vou escrever sobre isso. Como eu disse: mensageiros da experiência humana. Quando a gente desbloqueia certas vivências no joguinho da vida, é inevitável atualizar o catálogo de possíveis cenários e descrições para um conto ou um romance. No meu caso, no entanto, a diferença entre o vivido e o escrito é quase tão grande quanto a distância entre dois planetas, e ao mesmo tempo tem a espessura de um fio de cabelo. Isso porque a imaginação vai até onde eu não fui, a ponto de criar algo que é meu, mas também não é.
Como eu disse, é complicado.
Sei que, para algumas pessoas, a praia não é essa. Essas pessoas vão querer continuar escrevendo sobre suas experiências, vão procurar talvez o terreno do ensaio e da não-ficção, e tem muitas escritoras incríveis aqui no Substáquio fazendo isso. Há espaço para todo mundo no puxadinho literário. O meu ponto aqui hoje é a defesa dos mais desregulados da cabeça. O pessoal que até gosta de escrever coisas pessoais, de vez em quando, mas que ama pensar em histórias de gente que não existe.
Se eu fosse alguém na fila do pão, até lançaria um manifesto público em defesa de uma ficção mais imaginativa na literatura brasileira contemporânea atual, que anda meio carecida disso. Uma ficção mais alegórica e fora da casinha. Porque imaginar é gostoso, é necessário e valioso. Acho que, nos últimos tempos, também passou a ser urgente.
Uma petição
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Eu admiro muito quem cria um romance ficcional. Cheguei na escrita pelo texto autobiográfico e ainda não sinto que consiga criar algo assim, totalmente inédito. Mas vejo que como consumidora de ficção, busco histórias que tem os dois pés na realidade. Sinto muito mais vontade de ler histórias que deem essa sensação de que poderia ser real. Acho que é trauma dos filmes da Disney, mas vejo que tem produções maravilhosas que passam um tom realista que, mesmo sendo intensas e tristes muitas vezes, me fazem me sentir humana e normal.
Fabiane, que edição maravilhosa! Deu vontade de sair grifando as frases que nem faço nos meus livros, sabe rs. Olha, eu também sinto que a literatura brasileira contemporânea tá precisando mergulhar mais na ficção... li alguns livros que me pareceram quase panfletários, do tipo “vamos descrever a realidade atual, pois temos que dar o nosso recado”. Sei lá... gosto de livros que têm algo a dizer e gosto disso de traduzir a experiência humana, mas é o como se faz. Eu, escritora de crônicas que sou, amo uma boa ficção! Aproveito pra lhe desejar um parto com saúde e tranquilidade... e um puerpério de força, resistência e gentileza consigo mesma! Bjs