Para ouvir lendo: Regina Spektor - Fidelity.
Neste ano, consolidei um processo enorme de fragmentação da minha vida: meu trabalho único, estável, virou uma série de trabalhos esparsos e inconstantes (fé no pai que deu certo). Minha casa se tornou duas casas, os boletos e os gatos se multiplicaram e minha pobre atenção, antes tão firme no próprio eixo, quebrou feito espelho em milhares de pedacinhos. Foi difícil manter o foco. De alguma forma, lidei bem com todas essas mudanças pela natureza caótica do meu raciocínio. Só fui entender agora que meu processo criativo, como todo o resto, também flutua pelas brumas da multiplicidade. Tenho dezenas de ideias ao mesmo tempo e às vezes fica difícil selecionar uma delas. Por sorte, também sou muito boa em ser fiel às escolhas – da cabeleireira ao tatuador, passando pelos livros e os homens. Eu gosto de me manter aterrada. Uma coisa equilibra a outra.
Uma amiga sagitariana, também às voltas com seus mil e um projetos, tem a natureza oposta. Ela, que resolveu finalmente escrever seu romance, não para de encontrar obstáculos pela longevidade do negócio. Eu nunca menti, nem nessa newsletter, nem nas conversas, clubes de leitura e eventos que participo: escrever é uma coisa que dá trabalho, que suga tempo, e para quem quer resultado rápido aconselho sempre a ter paciência ou desistir logo. É um relacionamento sério e estável, um casamento com as próprias assombrações. O pior talvez seja seguir com o compromisso sem saber o que será disso tudo, e de você, quando acabar.
Fazer literatura é uma forma de monogamia, de construir um lar e voltar para ele. Eliminando os ruídos de fora, as vontades criativas rápidas, que são micro paixões que nem sempre valem a pena. Escrever livro demora anos. Nem todo mundo está disposto a esperar por algo que ainda vai sair de si mesmo.
O Antônio Xerxenesky deu uma ótima dica na newsletter dele para quem quer saber como persistir em um projeto a longo prazo. Não só assino embaixo, como acrescento: é mais fácil se comprometer com aquilo que é verdadeiro. Uma história que você quer escrever tentando ser alguém que não é tem fortes probabilidades de ser abortada. É preciso honrar o momento, mas também entender que o processo criativo é uma estrada, muito mais do que uma linha de chegada.
Questionar as próprias ideias e os próprios métodos é absolutamente normal. Tentar mudar o curso, mudar de narrativa, também. O problema das mudanças frequentes, no entanto, é que dificilmente elas levam ao grande triunfo da constância: a evolução.
Às vezes tenho a impressão de que as pessoas buscam respostas rápidas para tudo. Como publicar um livro, como escrever um livro. Ninguém quer saber do drama e da espera. Do sofrimento e da rejeição. Embora eles também façam parte do caminho. Também não tenho como dizer a alguém se uma ideia é boa e válida (até porque, muito mais do que a ideia, o que interessa é a forma como ela é trabalhada). Cada pessoa tem o seu processo e o seu livre-arbítrio criativo. O que resta é só ter fé em si mesmo. O que é um baita desafio, eu sei.
Como disse na última newsletter, quase não tenho escrito nos últimos tempos, embora ande cheia das inspirações. Uma das histórias que eu sei que quero contar, no entanto, andava travada por um detalhe que eu não sabia resolver. Pois bem: na última semana, durante o fatídico jogo de eliminação do Brasil na Copa, conversei com uma pessoa que me contou um caso e, BUM, era a solução que eu precisava. Não estava nos livros, nem nas pesquisas, mas na vida de outra pessoa. É assim que funciona para mim, em geral. Alguém me conta alguma coisa que acaba me dando o gatilho para começar. Agora, talvez, eu comece.
Pode ser que eu mude no meio do caminho e sinta vontade de fazer outra coisa. Ou não. Pode ser que essa seja a história do meu próximo romance (não o próximo publicado, esse já está no prelo e sai já já, em fevereiro). Ou não. Mas colocar a mão na massa, fazer, dá outra perspectiva. Até porque, para desistir de alguma coisa, é preciso tentar. Só dá para trabalhar com o que está escrito. O que ainda está na cabeça, meus amigos, é sempre muito lindo.
Perguntas que eu uso para mim mesma, e que talvez sejam úteis para alguém:
Qual é a história que só eu posso contar?
Qual é a história que eu preciso contar?
Qual é a história que mexe comigo?
Qual é a história que vai fazer sentido?
E que vai continuar fazendo sentido, mesmo com o tempo?
Aí é com cada um.
"i feel seen" o.O'