Na manhã do último domingo, entreguei nossa bebê ao meu marido e resolvi dedicar algumas horas exclusivamente para mim. Eu poderia utilizar esse respiro para resolver uma infinidade de pendências da minha lista de mãe recente, como hidratar o cabelo (estou precisando), fazer as unhas, terminar de ver aquela série que só falta um episódio ou mesmo tirar uma bela soneca. Em vez disso, apenas tomei um café com calma, abri o computador e comecei a escrever o que potencialmente pode ser o meu novo romance. Só parei umas duas horas depois, e embora tenha continuado cansada, com o cabelo ressecado, as unhas carcomidas e cheia de sono, ainda acho que foi uma excelente escolha do que fazer com o meu tempo.
Desde que comecei a escrever tenho consciência de que esse nunca será o tipo de atividade que o mundo recompensa. Não é algo que segue a lógica do capitalismo, por mais que os livros sejam produtos, nem obedece ao imediatismo das redes sociais. Embora eu tenha até ficado empolgada e enviado as cinco páginas que escrevi para minha amiga e leitora-beta na mesma hora, a verdade é que na maior parte do tempo escrevemos para dentro. Daqui sai, aqui fica, até que o material se apresente mais ou menos pronto. É um segredo que consome grandes fatias de tempo. Quando eu era criança e adolescente meus pais, por exemplo, nunca entenderam muito bem. A menina esquisita enchia caderninhos de arame com histórias escritas a lápis, dedicando grande parte de sua existência solitária a esse hábito, e a pergunta que sempre ficou foi um gigantesco pra quê.
Para ganhar dinheiro, certamente, não é. Já falei aqui sobre como é difícil viver de literatura no Brasil. Agora que sou uma escritora publicada & reconhecida (risos), as pessoas entendem um pouco melhor quando digo que tenho um compromisso com minha ficção, talvez porque nem desconfiem de como um autor nacional vende pouco. Até ganhei algum dinheiro relevante com literatura, não vou mentir, mas não foi vendendo livros, e não deu para pagar metade das minhas dívidas. Não é para ganhar dinheiro que eu escrevo, não senhora.
É claro que ser publicado é uma peça fundamental dessa equação. Sem o leitor, o escritor fica meio sem valia. Mas eu arriscaria dizer que também não é com esse objetivo que a vontade se instala. Porque, veja bem, acontece uma coisa muitíssimo curiosa: é que, no frenesi da escrita, vamos colocando um corpo na ideia, sentindo o coração palpitar com o extraordinário disso que é ser capaz de prender um pensamento na palavra, se tivermos sorte publicamos aquele mundo recém-criado e depois... bem, depois tudo perde um pouco a graça. Há um momento de dissociação, um esvaziamento. O livro chega aos leitores e de repente não é mais nosso. Ainda que fiquemos felizes com a repercussão, mesmo que pequena, só pensamos na próxima coisa a ser escrita.
Dispenso os arroubos poéticos nessa investigação dos meus motivos. Não escrevo para sobreviver, tampouco para me salvar. Viveria muito bem, aliás, se não escrevesse, talvez até vivesse melhor; muitas vezes tentei abandonar ou mesmo desistir disso. Seria uma pessoa regulada da cabeça, quem sabe, não ficaria congelada em momentos aleatórios pensando em gente de mentira. Escrever me consome tempo e energia, e é muito curioso que eu escreva feito doida justamente quando mais preciso das duas coisas.
Pra quê me torturar, então?
Porque eu me reconheço quando escrevo. Porque é disso que sou feita.
Essa é a linguagem com a qual interpreto o mundo. Não é, simplesmente, só o meu trabalho. Não é só a minha grande paixão. Não acontece com um objetivo, porque arte não é útil, e provavelmente só terminará com a minha morte ou uma doença que me desfaça. Os japoneses têm uma filosofia chamada Ikigai que tenta resumir o propósito pelo qual vale a pena viver. Um Ikigai é a intercessão de todas as coisas: aquilo que você é bom, aquilo que você ama, o que o mundo precisa e o que te pagam para fazer. Escrever, com certeza, é meu Ikigai.
É um pouquinho de vaidade e prepotência achar que tenho alguma coisa a dizer ao mundo, mas o mundo é grande, complexo e, embora nenhuma experiência seja inédita, são poucas as pessoas que conseguem ser porta-voz da vida. Por que eu não faria isso, por que não você? Às vezes sinto que escrever é só uma necessidade primitiva de me conectar com os outros seres humanos, incluindo os que nunca conhecerei e que talvez ainda não existam. Um pouco como a sonda Voyager 1 e seu disco de ouro gravado com as informações da humanidade, girando no breu à espera de outra civilização que escute. Meu tempo aqui acabará um dia, mas as coisas que escrevo estarão sempre aí, são um registro imóvel da minha imaginação. Esse é o tipo de coisa que me enche de entusiasmo e fico triste quando vejo pessoas com vergonha ou com medo de se jogar no mesmo mar. É o que mais escuto: um dia tomo coragem, um dia ainda escrevo meu livro. Parece que há um momento certo e que chegará esse momento, quando na verdade ele não existe. É um pouco como ter filhos – precisa ser uma criação sem cálculo, um gesto de coragem, se o desejo existe. Se pensar demais, desiste.
Escrever é inútil, é dispendioso, dói a cabeça, gasta tempo. Mas, francamente, é um enorme incentivo para viver.
Escrever é uma perturbação que alivia, meu deus.
Belíssimo texto. Para mim, a escrita tem também um caráter de conexão com o mundo. Cada texto que eu posto ou publico é como um bilhete em uma garrafa lançado ao mar, na busca por encontrar alguém que leia e se sinta tocado. Stephen King diz que é a verdadeira telepatia. Eu concordo com ele.