Toda pessoa que escreve um livro e admite isso em público sabe qual é a exata pergunta que vem depois. É tão natural e automático que já consigo ouvir as quatro palavrinhas se formando: sobre o que é? Em geral, querem saber a grande “reflexão” por trás da história. Quando lancei meu primeiro romance, Apague a luz se for chorar, enfrentei uma dificuldade imensa para responder. Porque, embora meu romance de estreia aborde ali muitas coisas (morte, luto, sacrifícios, escolhas), nunca foi simples encontrar uma caixinha para ele. Quando escrevo, não penso em temas, nenhum escritor de ficção deveria fazer isso. Queria poder dizer que fiz, ou tentei fazer, um livro sobre pessoas, sobre a estranheza de estar vivo e os traumas que a gente carrega no caminho. Mas acabo com a resposta mais curta – que pouco colabora para as vendas – e digo que é um suspense dramático, que conta a história de dois personagens interligados por um possível crime. Ainda bem que tenho editores.
Com o segundo romance, Como se fosse um monstro, é bem mais fácil, embora não tenha sido intencional. É porque o monstro conta a história de uma barriga de aluguel, e por acaso é um livro bastante influenciado pelos temas da maternidade e a não maternidade. É quase um alívio poder responder com mais clareza, bater um martelo, sim, é um livro sobre isso. Uma leitora, no entanto, me emocionou outro dia ao dizer “eu acho que é um livro sobre solidão”. Quis chorar e abraçar essa pessoa. Porque é verdade que a solidão também está presente nesse romance, porque é um dos assuntos que mais me comovem. Achei delicado que ela tenha percebido.
Mas o motivo pelo qual eu não gosto dessas definições é que, para começo de conversa, os livros nunca trazem mensagens únicas e ganham muitas outras interpretações no meio do caminho. Sei que é próprio da crítica literária (e da configuração do mercado) definir os trabalhos, empacotá-los em uma série de palavras-chaves, dizer logo a que vieram e o que são. Deus sabe que os agentes e editores, que tanto fazem por nós, também precisam desses instrumentos. Na perspectiva da autoria, no entanto, o problema é cobrar dos escritores nacionais que saibam de cara sobre o que estão escrevendo, e que seus livros sejam sempre muito importantes, um livro-manifesto. Aliás, pior do que isso – a tragédia é quando escritores tentam escrever aquilo que julgam relevante ou popular, quase uma ficção movida a SEO. E, por favor, não estou aqui pregando a patacoada conservadora, isso não é uma defesa de obras vazias de diversidade ou do mais do mesmo que é publicado desde sempre, como as histórias de escritores brancos de meia-idade em crise criativa.
O meu ponto é que a liberdade de criar precisa sempre ser maior do que a ideia de que o livro é funcional. A literatura não serve para edificar ou ensinar as pessoas. Nem mesmo está aqui para causar somente boas impressões. Livros podem ser excepcionais na mesma medida em que indigestos. Ótimos personagens calham de ser uns escroques. E não é só de romances sisudos que vive a boa arte. Nos momentos de angústia e profunda tristeza, uma história despretensiosa pode salvar a nossa vida. Além do mais, nem sempre os livros são movimentados por grandes questões. Às vezes, são as pequenas questões que pegam a gente.
Uma das minhas escritoras favoritas da vida é uma canadense, vencedora do Nobel, que escreve longos contos, quase novelas, sobre a vida de mulheres no interior do Canadá, em paisagens remotas e inóspitas, onde pouquíssima coisa “relevante” acontece. A sra. Alice Munro me ensinou o que era escrever quando resolveu encerrar seus contos das formas mais ordinárias, com personagens lavando louças ou mirando janelas, sem grandes acontecimentos ou conclusões, e mesmo assim, mesmo com tanto vazio, tem esse poder de me deixar com o estômago revirado de coisas ácidas. Posso citar pelo menos outras duas rainhas que apresentam a mesmíssima habilidade: Shirley Jackson e Lygia Fagundes, é claro.
Qual é a utilidade disso tudo?
Houve um tempo, quando eu achava que isso era possível, que decidi parar de escrever. Nada que eu fazia era publicado ou visto como relevante, aquilo parecia uma enorme perda de tempo. Qual é o propósito, eu me perguntava, o que eu tenho a acrescentar? Demorei a perceber que era mesmo um gasto enorme de tempo que não me daria nenhum retorno financeiro ou prático, mas isso nunca foi motivo para deixar de fazer. As coisas são o que são. Escrever me faz bem, independente da leitura que fazem de mim.
Em sua maravilhosa coletânea de ensaios “A vida não é útil”, Ailton Krenan diz:
“[...] A vida é tão maravilhosa que a nossa mente tenta dar uma utilidade a ela, mas isso é uma besteira. A vida é fruição, é uma dança, só que é uma dança cósmica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária. Uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, cresceu, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, foi para o espaço, tudo isso é uma historinha ridícula. Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil? Nós temos que ter a coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência. [...] Nós estamos, em nossa relação com a vida, em maravilhosa fruição. Nunca vai ocorrer a um peixinho que o oceano tem que ser útil, o oceano é a vida.”
Peço emprestadas as palavras desse grande pensador e mestre para dizer que tampouco os livros são úteis. A ficção não é útil. Ela não vai te fazer ficar mais inteligente, não vai te fazer uma pessoa melhor. Aliás, se você acredita nisso, volte duas casas, já está fazendo tudo errado. Como escritores, nossa missão é movimentar essa roda que existe também porque somos seres empáticos e capazes de viver mil vidas em uma. Exigir que todas as obras contenham seu próprio significado de cara é podar a nossa criatividade e imaginação. Portanto, conte as suas histórias. Mesmo que elas pareçam bobas, mesmo que o “sobre” não seja assim tão claro, conte suas histórias, sejam elas sobre humanos, cachorros, árvores ou robôs. Escreva, e deixe que os outros interpretem.
Ah, Fabiane! Que texto lindíssimo, essa é uma reflexão que assombra nós escritoras a todo instante. Você está certíssima, não podemos paralisar diante dessas questões ou dessa tentativa de encontrar sentido em nossas obras. Escrevemos porque existimos e devemos seguir escrevendo enquanto isso alimentar nossa alma, coração e vida.
Reflexão belíssima, entra na minha balança pessoal dando razão a voz que me diz que devo continuar a escrever, a despeito do que pareça ser o sucesso. Acabei de ler seu primeiro romance e fiquei muito arrebatada com o final. Não esperava o que aconteceu, quis conhecer João e abraçá-lo, quis sentar com Cecília e ouvir suas angústias. Obrigada pela News sempre delicada e pela sua literatura.