Na semana passada ou retrasada, o site São Paulo Review of Books perguntou a pessoas do mercado editorial o que elas acham que serão os destaques e tendências na literatura brasileira em 2025. Algumas citaram a presença mais forte da autoficção ou das questões políticas e climáticas, outras aludiram a lançamentos badalados, como o novo livro da Giovana Madalosso, mas uma grande parte citou mesmo o foco em questões sociais, com mais presença de escritores negros, LGBTQI+ e mulheres. Adoro ler esses compilados que saem no começo do ano, é sempre interessante para ver como a galera enxerga os movimentos literários. Da perspectiva de quem escreve ficção, no entanto, essas matérias podem ser perigosas de acompanhar. Não estamos aqui para cumprir tendências. Achar que vai se dar melhor se escrever sobre este ou aquele tema – com a óbvia intenção de surfar em uma onda – é uma grande e enorme armadilha, que pode prejudicar demais a nossa literatura.
Talvez o que você escreva não seja uma tendência, é o que eu gostaria de dizer. Mas o curioso sobre as tendências é que elas podem possuir uma vida bem curta. O mundo muda o tempo todo, assim como as temáticas, e nosso trabalho enquanto ficcionistas não é acompanhar o presente, por si só, mas também antecipar o futuro. Além disso, existe a delicada questão do tempo: livros demoram a serem gestados e escritos, uma publicação pode levar anos, o processo editorial também leva muitos meses para ser concluído. Não sei se todo mundo tem ideia disso, mas a maior parte das editoras já começa o ano fechando o arquivo dos livros que publicará ali pelo fim do semestre. É uma fantasia achar que é possível fabricar um best-seller seguindo a lógica do momento. Quero dizer, até que é possível. Você pode decidir que será a Annie Ernaux brasileira, ter os contatos certos para publicar bem rápido e escrever um livro de autoficção muito bem-sucedido em vendas, por exemplo. Ou pode fabricar um romance com temática social perfeitamente talhado para ganhar um prêmio e de fato ganhá-lo. Mas se não é exatamente isso que você quer fazer, algo que você faria em qualquer outro cenário, tem sentido fazer ainda assim? Se a sua criação só existe para atender uma demanda, o que te diferencia de uma inteligência artificial?
Para escrever ficção, é preciso prestar uma reverência aos nossos ecossistemas internos, mais do que ao mundo lá fora. Cultivar nossas tristezas de estimação, adubar a terra da fantasia, quem sabe colhendo uns cogumelos no processo. Muitas pessoas começam prestando atenção na própria vida, claro, e da experiência individual arrancam suas ideias. Outras se inspiram em outras narrativas que as comovam, sejam elas deste século ou não. Eu costumo brincar que as histórias que escrevemos dizem muito sobre quem nós somos, e podem ser ótimos mecanismos de psicanálise, caso alguém se interesse por isso. O ato de inventar é deliciosamente pessoal. Ou assim deveria ser.

Não estou querendo dizer que devemos honrar nossa arte a todo custo e esquecer as mãos de ferro do deus capitalismo, sem olhar para o que está sendo publicado ou ter uma visão crítica da sociedade ao redor. Não sou tão idealista. Eu sempre quis publicar um livro, era meu sonho, e sempre quis ser lida. Além disso, ser escritora é minha profissão, o que significa que eu tenho boletos a pagar, e por isso entendo que o mercado editorial também é um mercado, e entendo que algumas narrativas sejam priorizadas. O que está rolando lá fora também importa, em certa medida. Mas isso não pode e não deve guiar o caminho da criação, falando aqui sob a perspectiva de quem trabalha na cozinha. O processo precisa acontecer de dentro para fora, e não o contrário.
Além disso, a tal fórmula do sucesso – que, no caso da literatura brasileira contemporânea, é um sucesso bem mequetrefe – é uma incógnita completa. Não é possível prever quais histórias vão cativar os leitores, e até editores experientes volta e meia lamentam o naufrágio de uma aposta quase certa. A literatura não funciona na mesma lógica imediatista das redes sociais, nunca funcionará, e eu sei que pode até ser muito solitário e inconveniente passar meses e anos mergulhado em alguma coisa sem poder mostrar para ninguém, sem receber o olhar da aprovação alheia, e eu sei que pode ser incrivelmente tentador buscar uma caixinha para enfiar a sua arte, escrever algo talhado para agradar, na esperança de que a oportunidade de ouro enfim apareça. Mas, nesse caso, quem estará empunhando a sua caneta: seu coração ou o seu ego?
Adoro a história de um colega escritor, o Moacir Fio, e pedi licença a ele para reproduzi-la aqui. Acontece que o Moacir, certa feita, decidiu criar uma página de poemas no Instagram como uma espécie de experimento literário. Seu objetivo era provar que era muito fácil fazer sucesso com uns versinhos genéricos quaisquer, seguindo uma estética que o algoritmo certamente impulsionaria. Desceu a mão e fabricou a poesia mais chiclete que conseguiu elaborar, inspirado em templates que já faziam sucesso em outros perfis. Não demorou muito para o experimento começar a dar certo. A página bombou de seguidores. Moacir começou a receber mensagens de pessoas genuinamente emocionadas com seus versos irônicos. O negócio começou a tomar uma proporção e ter um alcance que seu trabalho literário “sério” jamais tinha encontrado até então (sim, uma coisa bem Ficção Americana, se você também pensou nesse filme). O escritor, com a consciência pesada, deletou a página. Perguntei o motivo.
“Para começo de conversa, percebi que era uma postura extremamente arrogante, o que me deixou mal”, ele disse. “Também tinha o fato de que eu mesmo não gostava dos poemas e, como na época eu trabalhava com algo que eu detestava (era bancário), a literatura era para mim um espaço de respiro, que eu jamais trataria como um negócio. Por fim, passei a ter uma compreensão mais ampla de como as coisas tocam as pessoas e, ainda que eu reconheça toda a problemática das redes sociais, das mensagens motivacionais, dos coaches, etc, eu entendi que para muita gente um poeminha bobo na timeline faz diferença. Eu não conseguiria fazer aqueles poemas, daquele jeito, compreendendo o peso dessa responsabilidade.”
Eu não conseguiria fazer aqueles poemas daquele jeito.
Vocês já pararam para pensar nisso, sobre como o que a gente escreve afeta o outro? E como a ficção, apesar de ser tudo mentira, não pode ser assim mentirosa? Pelo menos para mim, não faz sentido escrever aquilo que eu presumo que as pessoas queiram ler, só para ser lida.
Eu entendo demais o Moacir. O que eu acho mais gostoso, nesse lance de escrever meus livrinhos, é explorar minhas próprias ideias. Às vezes elas calham de encontrar os assuntos em órbita, às vezes não. Eu também gosto e preciso muito de dinheiro e adoraria vender mais livros, ser mais próspera nesse sentido. Uma leitora uma vez me disse que eu tinha potencial para vender e ter tantos leitores quanto a Carla Madeira, especialmente no caso do meu último romance, e eu respondi: Deus te ouça. Fazer sucesso não é um defeito, nem anula os méritos que um trabalho pode ter. Mas eu queria conseguir isso tudo com as minhas coisas, sendo fiel a mim mesma, sabe? Eu não quero ser a Carla, eu quero ser a Fabi. A goiana que escreve as suas histórias melancólicas a partir do Cerrado, que ultimamente está pirando em temas como inteligência artificial, maternidade e crise climática, e que tenta escutar seu eu artístico todos os dias. Alguém que curte ter as próprias brisas. Se for para “fazer sucesso” de outro jeito, seguindo uma cartilha bem documentada daquilo que “dá certo”, acho que não quero. Passa mais tarde.
Daí sigo escrevendo (tentando) há cinco anos.. Uma hora o livro sai. 📖
Que texto necessário. Dificil demais falar de profundidade no meio de tanta superficialidade.