
Quando certa manhã acordou de sonos intranquilos, meu colega escritor
se deparou com a presença do Copilot, a IA da Microsoft, assombrando sua página de Word. O Fabio escreveu um texto delicioso a respeito, explicando os motivos de seu incômodo. Afinal de contas, para quem escreve ficção, essa imagem é pavorosa: a ideia de ter um robô ali, espiando por cima do seu ombro, pronto para metralhar um sinônimo mais adequado, ou te lembrar dos lugares perfeitos para as vírgulas. O meu computador, graças a Deus, ainda não foi atualizado. Meu Word permanece um reino intocado com apenas as minhas palavras. Para o bem e para o mal.Sou uma pessoa que se interessa genuinamente por esse novo e fascinante capítulo da humanidade chamado inteligência artificial e, embora o prognóstico às vezes me dê medo, não sou tão pessimista quanto algumas pessoas. Acho sim que precisaremos lidar com uma carga cada vez maior de conteúdo gerado de forma automática, mas não sinto que nossa criatividade estará ameaçada, pelo contrário. A IA pode até parir textos quadrados e sugerir uma homogeneização que certamente servirá a muitos propósitos, no entanto acredito que falhará em conceber a novidade do fazer artístico. Não é que o robô seja incapaz de escrever um texto melhor do que o nosso, veja bem. Em muitos aspectos, pode até ser que alcance uma melhor clareza. O que os robôs não possuem, contudo, é uma perspectiva de autoria.
Trabalho muito usando IA no meu freela fixo, um trabalho remoto para uma empresa sediada no exterior, para o qual faço principalmente criação de conteúdo para jogos. Uso o ChatGPT como uma espécie de estagiário – ora relegando tarefas chatas como tirar e colocar aspas em um texto, ora pedindo para traduzir expressões para o inglês quando estou com preguiça demais de elaborar meus pensamentos em outra língua. Como o meu trabalho hoje em dia também envolve um pouquinho de design, algo que nunca imaginei fazer na vida, também uso bastante ferramentas de geração de imagens como Midjourney e Leonardo. Todos os dias me impressiono e me assombro com as facilidades que essas ferramentas concedem. Busco me aperfeiçoar e aprender mais. Afinal, eu preciso do meu emprego. Se esse é o futuro, é sábio não se rebelar contra ele.
Tenho me dado muito bem com esse novo modelo de criação, modéstia à parte. Meus empregadores avaliam minha performance como positiva. Eu não me ofendo com qualquer falta de originalidade dos produtos que crio, pelo contrário. Não estão me pagando para criar obras de arte originais, autênticas, dignas de um museu. O que eu preciso é apenas replicar modelos que funcionam com a audiência da vez. Nisso, a inteligência artificial faz um trabalho impecável. Com os comandos certos, ela é capaz de analisar, aperfeiçoar e atingir o público que precisa atingir. Ela é a deusa soberana do compartilhamento em massa.
No meu trabalho de ficcionista, entretanto, a coisa muda de figura. Jamais utilizei o ChatGPT ou derivados para escrever. Em primeiro lugar, porque nunca senti necessidade. Escrever é minha atividade favorita, aquela que considero exercer com mais fluência, por que eu buscaria uma muleta digital? Em segundo, porque a minha escrita acontece sem a necessidade de direcionamento, não nasce de comandos calculados e nem tem um público definido a atingir, como ocorre no trabalho que paga a maior parte das contas. Escrevo ficção para expressar meus incômodos, para iluminar meus assombros, e também para me divertir. Se eu peço uma IA que faça isso por mim, eu vou tirar toda a graça do negócio. A IA será incapaz de falar o que eu quero falar, mesmo que eu peça e até implore com o prompt mais afinado do mundo, porque tudo que vou escrever já está sendo escrito dentro de mim, e aos meus pensamentos inexplorados ela (ainda) não tem acesso.
No campo da escrita criativa, aliás, o ChatGPT pode ser um grande professor, mas não do jeito como as pessoas imaginam. A inteligência artificial é uma excelente ferramenta para demonstrar tudo que um escritor não deveria fazer. Isso porque, em matéria de fluxo, estilo e fabricação de detalhes, a máquina é uma enorme reprodutora de clichês. Peça um texto em estilo literário sobre qualquer assunto, e vão te entregar um mastigado genérico de tudo que já foi escrito a respeito. Peça imagens específicas, e o robô vai acertar nos imaginários mais comuns. Essas tecnologias baseadas em deep learning se valem de tudo que já foi escrito para cuidadosamente montar e cuspir um novo parágrafo customizado. Mas, Fabi, não é isso que os escritores fazem? Sim, nós, os escritores humanos, também nos valemos de tudo que lemos e das nossas referências para escrever humildes parágrafos com a nossa marca. Fazemos o mesmo processo que a máquina, ainda que de forma muito mais lenta. A diferença é que, se queremos ser bons, buscaremos subverter e conquistar aquilo que foi a inspiração. Criamos a partir de tudo que existe, colocando a assinatura humana ao imaginar do nosso próprio jeito, correndo dos clichês como o capeta corre da cruz, porque escrever um texto gostoso é, em grande parte, uma questão de injetar perspectiva.
Gosto de dar um exemplo muito bom nas minhas oficinas literárias. É que certa feita, movida pela necessidade de provar o que estou dizendo, pedi ao robô que reproduzisse o primeiro parágrafo do livro de uma grande escritora contemporânea, a Socorro Accioli. No romance Oração para desaparecer, a personagem de Socorro acorda debaixo da terra, descobrindo, portanto, que foi enterrada viva. Pedi ao ChatGPT que escrevesse a mesma cena que ela escreveu. O prompt foi meticulosamente talhado para se aproximar do texto de Socorro: pedi que descrevesse o despertar de uma mulher enterrada viva, em primeira pessoa, com riqueza de adjetivos e sensações, e que utilizasse inclusive a mesma quantidade de linhas. O resultado vocês podem conferir na imagem abaixo.
Enquanto o robô buscou as imagens mais óbvias – apelando para expressões como “claustrofóbica escuridão”, o “medo escorrendo pelas veias”, a respiração “como uma luta” – Socorro utilizou todo seu arcabouço literário de escritora cearense para meter um belíssimo “areia estralando nos dentes”. Descreveu a angústia de sua personagem como uma agonia gelada, molhada e fedida. Disse que eram os bichos (os bichos, não os vermes ou os animais) que alisavam sua língua, e em vez de usar “corpo” usou “os caminhos dentro da carne”. Para mim, é o exemplo perfeito porque ilustra aquilo que devemos buscar, quando escrevemos – uma escrita diversa daquilo que já foi testado, moldada por um repertório individual e explorando as palavras com gosto. Escrever bem, para mim, é fazer isso aí.
Não há dica de escrita mais certeira, no campo da ficção, do que essa: buscar sempre contar as coisas de um jeito próprio, acrescentando detalhes como se estivesse dentro da história, evitando (sempre que possível) os lugares mais comuns, o que vale também para os adjetivos e substantivos empregados. É assim que os textos ganham vida, quando escritores acionam suas experiências mais esquisitas, quando vasculham suas almas e se valem de seus sotaques. Isso não é coisa que a inteligência artificial vá conseguir atingir tão cedo. Essa capacidade de olhar para uma experiência universal como o amor ou o luto, e fazer disso uma história individual e recente. Aí reside o nosso enorme potencial criador.
Antes de ir embora...
Para quem lê em inglês, a
me recomendou dois textos ótimos para pensar e se assombrar com a inteligência artificial: este e este aqui. Como eu disse, adoro o assunto, e acho que vou criar uma história a respeito, porque essa é a nossa melhor vingança.
2. Ainda tenho uma vaga de leitura crítica disponível, possivelmente a última que conseguirei fazer antes do nascimento da Cora. Se você tem um original aí e gostaria de uma avaliação cuidadosa e sincera, me escreva em fabiane.c.guimaraes@gmail.com. Caso seu trabalho ainda não esteja completo, me escreva mesmo assim, podemos ver um descontinho que se adeque ao que você precisa.
Nos últimos dias perdi vários seguidores no Instagram e alguns assinantes pagos, suspeito que seja porque escolhi não chafurdar na treta literária da semana, por motivos que envolvem desde um enorme cansaço de crucificações públicas a uma filha doente ocupando meus nervos. Gostaria de pedir mais uma vez que, se você gosta do que escrevo, que me apoie dando uma força lá naquela rede maldita ou assinando a parte paga da news. Em breve teremos mais uma entrevista exclusiva no Conversas de estimação. Eu dependo do meu trabalho como escritora e tenho muitas fraldas para comprar. Você também pode assinar um ano de newsletter via PIX com desconto, utilizando o QR code abaixo (depois é só mandar uma mensagem que libero o acesso):
Olha, estou ficando repetitivo, mas sempre digo por aqui quando o assunto é IA. Escrever, o Pinóquio virtual criado pelo ChatGePeTo até escreve. Mas sonhar, não sonha não. E aí reside um mundo de diferença.
Fico feliz demais em saber que meu texto revoltado com um ícone no Word tenha rendido este!
Eu penso que a relação que teremos com a IA pode ser muito saudável, contanto que tenhamos o discernimento de saber usá-la. Muitos textos não precisam, como você colocou, ser obras de arte. Até muitas vezes parece desperdício gastar criatividade valiosa com uma legenda de rede social que vai durar no máximo uma hora. Pra essas coisas a IA é uma mão na roda! Na ficção, vejo ela aparecendo em romances baseados em clichês e tropes, mas não na literatura individual, que fala tanto de cada pessoa que a escreve (e lê).