Na semana passada respondi a uma porção de entrevistas de veículos daqui de Brasília sobre a indicação ao Jabuti. Achei curioso que quase todos os jornalistas com quem falei tenham me perguntado, em algum momento, a minha profissão. Digo, a minha verdadeira profissão. Você é escritora, mas faz o quê da vida, é o que realmente queriam saber, embora tenham sido gentis e educados. Eu compreendo. Já fui jornalista um dia, sei como funciona a ficha corrida dos entrevistados, todo o combo sobrenome e profissão, e sei o quanto esquisito pode parecer alguém se definir assim, apenas como artista. Parece ingênuo, até vexatório, assumir em público a alcunha. Alguns podem achar, com essa resposta, que na verdade sou herdeira, ou sustentada pelo meu marido. Duas coisas que estão bem longes da realidade.
Há pelo menos dois anos, no entanto, ser escritora é minha única ocupação profissional. Já contei aqui sobre como larguei um emprego na ONU para me dedicar mais à escrita, pulando no mar desconhecido e assustador da vida freelance. Não vivo apenas da literatura ou da venda dos meus livros, é óbvio que não. Desde que paguei o adiantamento do meu último romance, até que recebo royalties mais gordinhos (o Monstro, graças a Deus, tem vendido bem). O dinheiro dos livros, no entanto, não é suficiente para manter uma pessoa, quanto mais uma família.
Se me atrevo a dizer que sou escritora em público, contudo, é porque esta ainda é a única carreira que ainda vislumbro. Não tenho direitos trabalhistas há algum tempo, nem sonho com a possibilidade de me aposentar. Construir uma trajetória na literatura, fazer disso algo rentável a longo prazo, é o único plano que tenho, o que às vezes me traz ataques de ansiedade no meio da noite. Não nego que seja uma loucura, mas já fiz loucuras piores. E se não der certo, podem me perguntar os mais céticos. Bom, se não der certo eu vou fazer o que todo profissional brasileiro faz, quando perde o emprego, entra em crise ou resolve mudar de área: vou dar meus pulos.
Eu trabalho com muitas coisas além da literatura. Ganho um punhado de dinheiro (mais do que ganhava antes, inclusive). Tenho CNPJ, pago impostos e um contador. O código da atividade econômica da minha empresa, aliás, diz claramente – atividades de artistas plásticos, jornalistas independentes e escritores. Ainda vou escrever uma crônica intitulada as coisas que já escrevi por dinheiro, pois o repertório é bem vasto. Hoje, meu principal contrato é com uma empresa de tecnologia do exterior, responsável por um jogo de Facebook, para a qual produzo conteúdo em português. Já trabalhei também para os chineses, traduzindo roteiros de novelinhas virtuais. Ao longo desse tempo em que sou CEO de mim mesma também editei livros corporativos, criei textos para sites, dei um pulinho na redação publicitária, aprendi a dominar ferramentas de IA como Midjourney e atuei escrevendo planos de negócios em inglês. Além, é claro, de dar oficinas e cursos de escrita. No geral, eu faço uma miríade de tarefas que nada têm a ver com escrever ficção, e modéstia à parte faço muito bem. Ainda assim, eu não saberia explicar quem é a profissional por trás disso tudo, sem dizer que ela é sobretudo uma escritora.
Levei algum tempo para sair do armário. Lembro que, em um dos primeiros blogs que tive, eu me definia como “jornalista assumida e escritora enrustida”. Depois, passei a dizer que era jornalista e escritora. Foi com alguma coragem que inverti a ordem, me posicionando como escritora e jornalista. Cortar o jornalista da equação foi uma decisão recente. O primeiro formulário que preenchi só com “escritora” no campo profissão soou estranhamente vazio. Eu tinha perdido meu apêndice, a minha muleta profissional. Mas gostei do que senti. Não há nada vergonhoso em dizer que é isso que sou. Uma escritora, até quando faço tantas outras coisas.
A verdade é que eu fui escritora até como jornalista. Nunca escondi as minhas pretensões literárias de ninguém. Eu estava no primeiro semestre da faculdade de comunicação, lá na UnB, quando o professor de oficina de texto descobriu que eu tinha publicado um conto em uma antologia. Meu primeiríssimo conto. O saudoso professor Luiz Martins, um poeta ele mesmo, ficou encantado. Foi um dos primeiros a me incentivar a não desistir. Encontrei muitos outros professores que também eram artistas na faculdade, incluindo o meu orientador do TCC, o escritor Paulo Paniago. Ninguém estranhava, nem me achavam ingênua. Me deixavam ser.
Tive a mesma sorte com os chefes de redação que peguei, mais tarde. Chefes leitores, chefes um pouco escritores eles mesmos, que não só compravam minhas ideias de reportagem só um pouquinho literárias, como davam corda para minhas liberdades poéticas e me ajudavam a trabalhar o texto, eliminando gordurinhas desnecessárias. Ninguém se espantou quando comecei esse negócio de lançar livros. Eu já era doida assim desde sempre.
Não estou aqui menosprezando a minha trajetória no jornalismo e na comunicação, aliás. Se o bicho apertar, posso perfeitamente voltar para a minha skin jornalista e comunicóloga. Sei fazer até assessoria de imprensa. Nunca vou esconder, contudo, que ao me contratar você contrata uma escritora. E há muitas vantagens nisso, se pararem para pensar. Significa que sou criativa, resiliente e acostumada a resolver perrengues. E que posso me colocar na pele de qualquer pessoa do mundo.
Pode parecer que não, mas existe algo muito poderoso nas palavras, principalmente aquelas que escolhemos para nos definir. Sei que é difícil, para a maioria das pessoas, dizer que é um escritor ou uma escritora. Muitos não se sentem merecedores dessa credibilidade porque não publicaram um livro. Ou publicaram, mas estão inseguros a respeito da própria escrita. Para outros, assumir a pecha é quase como assinar um atestado de insanidade. Escrever em um país que pouco lê. Sonhar com gente de mentira, assumir que usa horas do seu dia para inventar histórias, abraçar um sonho que parece coisa de criança, porque a imaginação é uma coisa tão infantil. Não é?
Ser filha dos meus pais, no entanto, me ajudou a entender o caminho prático dos sonhos. Meu pai e minha mãe sequer concluíram o ensino fundamental, mas me ensinaram a lição básica da persistência: a gente faz o que pode para sobreviver e prosperar. Meus pais são comerciantes. Eles me ensinaram que nada cai do céu para gente como a gente, que é preciso trabalhar, e trabalhar muito, para chegar a algum lugar. Conceito que comecei a aplicar também para as minhas ambições artísticas.
As pessoas esquecem que o domínio de uma certa arte, qualquer arte, exige prática e renúncia. Com a literatura não seria diferente. Há pouquíssimos escritores que atingem a maestria sem antes fracassar enfurecidamente. Todo mundo precisa começar de algum lugar e ir aperfeiçoando no caminho. E todo mundo que planta ideias, vez ou outra, sente o peso desmoralizante de uma colheita perdida. Tantas páginas escritas que vão para o lixo. Tantas histórias que morrem depois de anos de cultivo. Ou um livro lançado que morre sem qualquer aplauso. Não é uma vida bonita, eu nunca disse que era. Mas tem os seus momentos – eles só demoram um pouco a chegar. É um trabalho de formiguinha que exige paciência. Paciência exige tempo. Tempo também é o outro nome da dedicação.
Quando era criança lembro de assistir a um filme americano – jamais vou recordar o nome – em que uma das personagens era escritora. Essa mulher então escrevia um romance, seu primeiro romance, e deixava em cima da mesa de um grande editor. O original, um calhamaço impresso em papel rosado, chamava imediatamente a atenção do editor em questão, que ficava embasbacado com o talento da moça, é lógico, e logo se oferecia para publicá-lo com um polpudo adiantamento. Por muitos anos, enquanto eu crescia, aquilo ali foi minha fantasia. Eu realmente achava que um dia seria descoberta, que tinha alguma coisa parecida com talento, e que isso seria reconhecível só pelas minhas palavras.
Acho que fiz bem em deixar essa fantasia de lado. Ao anunciar tão cedo que era escritora, dei a mim mesma o poder de me descobrir. Acho que ganhei tempo para me reconhecer, para entender o quanto precisava me dedicar. Ainda não sei se isso vai dar certo, se eu conseguirei algum dia viver apenas da minha ficção. É uma aposta arriscada. Mas o capitalismo é uma droga de qualquer maneira. Se for para jogar esse jogo maldito até o fim da minha vida, que seja perseguindo alguma coisa que ainda me dá sentido para viver.
Lembrando que você pode apoiar minha empreitada assinando esta news por apenas 9,99 ao mês. Na semana passada, coloquei um conto inédito para os assinantes pagos, caso queira um pouquinho de literatura. O Substack não deixa de ser uma esperança para os escritores. Os de agora e os do futuro.
é curioso que tanta gente tenha dificuldade em assumir a profissão quanto ela está ligada ao campo da criatividade, como se uma profissão tivesse necessariamente de ter algo de objetivo, uma concretude.
Sou escritora e servidora pública. Amei, Fabiane. Saí do armário da escrita após conhecer o seu trabalho. Temos estilos diferentes, eu costumo fantasiar, você é agarrada ao cotidiano. Dou muito valor a sua noção de realidade, seja nos seus livros ou nos seus textos sobre a vida. ❤️