Há quase vinte anos, quando os streamings ainda eram algo distante, uma série misteriosa sobre um grupo de pessoas que caía em uma ilha e vivia ali situações absurdas e enigmáticas cativou meu coração. Lost trazia uma combinação de alguns dos meus elementos favoritos: mistério, uma certa aura de misticismo e dramas muito humanos. Como muitas pessoas, achei o fim da série frustrante. Para além dos mistérios sobre Os Outros e a Iniciativa Dharma (e que nunca foram revelados), os roteiros dos episódios de Lost eram tão geniais que me ensinaram muita coisa sobre construir uma boa ficção. Cada episódio costumava se concentrar em um personagem, mostrando flashbacks e sua vida pregressa, às vezes de forma que só faziam sentido no final. Era muito bom. Até deixar de ser.
Nessa semana, uma reportagem na Vanity Fair revelou algo muito pouco conhecido sobre os bastidores da série. No texto – retirado do livro "Burn It Down: Power, Complicity and A Call For Change in Hollywood" – atores e ex-roteiristas denunciam o racismo, machismo e assédio onipresentes que cercaram os anos de ouro da produção, com anuência dos produtores Damon Lindelof e Carlton Cuse. As denúncias dão conta de um ambiente tóxico, onde piadas racistas eram feitas aos quilos, e embalavam as escolhas da trama. Um racista, afinal de contas, vai sempre priorizar os seus. Na sala de roteiristas, os personagens brancos Jack, Rose e Sawyer eram vistos como os heróis. Personagens negros e de outras etnias, por outro lado, estavam ali para “tampar um buraco” e não ganhavam o espaço necessário. Isso não era algo velado. Era escancarado, como bem observou o ator Harold Perrineau, que interpretou Michael, e por “coincidência” foi demitido logo após revelar o desconforto com os rumos e a falta de profundidade de seu personagem.
O texto é muito interessante e faz muito sentido para quem acompanhou a série – encontrei uma matéria em português sobre o caso aqui. Que as escolhas de dois homens brancos tenham pautado todas as escolhas do roteiro não me surpreende. Na verdade, talvez seja o motivo pelo qual uma ideia tão boa acabou se perdendo e virando uma maçaroca de pontas soltas. Ao serem confrontados pelas revelações do livro, Lindelof e Cuse ensaiam uma espécie de mea-culpa e complementam com as respostas clássicas: “não lembro”, “não sabia” e “não fui eu”.
O que aconteceu em Lost não é algo isolado. As denúncias chegam em um momento de transformação da sociedade, o que acaba repercutindo na forma como as ficções são elaboradas. Por um motivo claramente mercadológico, porque não acredito que o capitalismo seja “bonzinho” a ponto de promover mudanças sociais, as produções agora buscam diversidade de vozes e protagonismos diversos. Obras que abordam novos pontos de vista, como o das mulheres e das pessoas negras, têm ganhado espaço e importância. Esse movimento é chamado por aí de identitarismo e também está presente na literatura contemporânea brasileira. É algo que tem sido alvo de muitas críticas – com frequência, de pessoas que dominaram os holofotes por bastante tempo.
Antes de tudo, já vou salientar aqui que acho essa discussão bastante complexa e que algumas pessoas falam melhor sobre isso, como o Jeferson Tenório nessa entrevista ótima. É natural que as questões identitárias estejam aparecendo com mais força na literatura. É da realidade que nascem os livros, afinal, e que bom que temos mais realidades do que nos fizeram pensar. O mundo não é mais um lugar branco dominado por homenzinhos brancos que fazem de seus umbigos a razão do universo. Não gosto, no entanto, quando entendem o identitarismo como uma máquina de rótulos, exigindo que pessoas negras escrevam apenas sobre pessoas negras, que mulheres tratem apenas de outras mulheres, e que as obras estejam sempre pautadas pela discussão social. O que é importante, quando falamos de representatividade, é que tenhamos pessoas escrevendo sobre vários lugares e de vários pontos de vista. Isso é um processo orgânico, ou ao menos deveria ser, com toda liberdade de assuntos possível. Ninguém deveria começar a escrever porque acha que um tema é mais importante que o outro. Os temas nunca deveriam ser mais fortes que a história.
Vou dar um exemplo pessoal. Meu novo romance, Como se fosse um monstro, é protagonizado por uma barriga de aluguel, uma mulher que não atende certas expectativas sociais. É um livro que discute questões importantes como a maternidade, a não-maternidade, o racismo e o direito de as mulheres governarem o próprio corpo, mas eu não escrevi esse livro pensando em defender bandeiras. Outro dia até me perguntaram sobre isso, sobre como enxergo a intenção política da minha escrita. Ora, escritores são seres humanos e, portanto, também são seres políticos. Mas a verdade é que escrevo sobre o que me interessa. Se todas as minhas histórias são atravessadas de alguma forma por questões de gênero, classe e cor, é porque a minha existência é permeada por elas.
Meu objetivo como ficcionista não é fazer uma tese, nem tenho bagagem intelectual para isso. Meu objetivo é escrever histórias. Acontece que minhas histórias espelham incômodos que agora começam a ser vistos, justamente porque lá fora, em algum lugar, alguém levantou o dedo para dizer eu também existo. Ao ganhar voz para contar o que vivemos e imaginamos, estamos, sem querer, enfiando o dedo em algumas velhas feridas. Não é algo intencional ou panfletário, é porque o mundo é assim. O mundo é um lugar fodido. E é mais fodido para algumas pessoas do que outras. O jeito como minha ficção é interpretada fica para os leitores e críticos. Meu trabalho é escrever o que sinto da melhor forma que posso.
Quando vejo pessoas criticando o identitarismo na literatura, parece que estou acompanhando aquela velha discussão de família, que sempre começa ou termina com a frase no meu tempo não tinha isso. Pessoas são muito resistentes a mudanças, classes dominantes se agarram aos próprios privilégios como se o espaço conquistado por minorias fosse de um perigo abominável. Vale a pena se perguntar se, ao questionar a autoria de pessoas negras e periféricas, por exemplo, não estamos repercutindo um viés de mundo ultrapassado, se não somos nós os verdadeiros maniqueístas. Da mesma forma, é preciso entender que conquistar espaços significa ter sua qualidade contestada ao nível máximo, e é bom pensar na evolução da própria escrita. Não é porque nossa existência aqui é importante que tudo que a gente fizer vai ser uma pepita de ouro.
Acho que, em vinte anos, com o avanço dessas discussões no nível social, as coisas serão bem diferentes. Espero que sejam.
Antes de ir embora…
A New Yorker republicou um conto da minha querida diva Alice Munro. Leitura imperdível
Acho muito lindo quando o Substack promove um intercâmbio de temas e debates sobre escrita e diversas narrativas, e gostei muito do último texto da Carla Soares em sua newsletter Outra Cozinha
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"Os temas nunca deveriam ser mais fortes que a história".
Adorei isso aqui.
Texto primoroso este seu, Fabiane. Comecei amando Lost quando assisti há anos atrás. No entanto, já percebia deslizes como "mocinhos" lindos, brancos, leves e com voz de comando e o "restante" dos passageiros - mulheres, idosos, negros, orientais, etc perdidos em meio ao nada. Cheguei a comentar sobre algumas cenas misógenas e também certa xenofobia. Com o tempo, fui perdendo o interesse. Ainda bem, de temporada em temporada a coisa ia embolando, até acabar grotescamente como acabou. Mas você nesta news foi muito além de Lost, e foi isso que me encantou. No meu livro de contos Marias também abordo temas que nos tocam no dia a dia. Se é um discurso político ou não - e somos seres políticos - é porque somos impactadas por essas questões, que invariavelmente estão à nossa volta e permeiam nossas histórias. Para encerrar, quero te dizer que Como se fosse um monstro está na minha lista de leitura urgente. Abração.