Na semana passada, recebi mensagem de um autor nacional de quem sou fã. Ele veio me contar que gostou bastante do meu conto na antologia O dia escuro. Tive faniquitos e, confesso, passou um filme na minha cabeça, já que o autor em questão é uma pessoa de quem já li basicamente tudo, alguém que foi e segue sendo uma referência. Não que tenhamos estilos parecidos, ou que meus livros se aproximem dos dele de alguma forma, mas as referências vão muito além do conteúdo ou da forma. Se eu escrevo hoje, é porque pessoas como ele escreveram antes. E pode até parecer uma coisa simples ou boba de mencionar, mas ler quem já está na estrada há algum tempo é fundamental para qualquer um que queira se estabelecer como escritor neste país.
Fico besta, e até um pouquinho chateada, quando escritores nacionais já reconhecidos e publicados listam suas referências e deixam de fora os próprios colegas. Ou quando aspirantes a escritores admitem que não leem literatura brasileira contemporânea. O segundo caso é ainda mais grave. Como você pode ter a pretensão de entrar em um mercado sem conhecer quem faz parte dele (ainda mais em um mercado duríssimo como o nosso)? Como você pode querer escrever, e desejar ser lido, sem oferecer essa contrapartida?
Fenômenos como o Itamar Vieira e a Carla Madeira podem até dar a impressão de que avançamos e a literatura brasileira contemporânea foi abraçada pelos leitores, mas a verdade é que os dois são casos isolados. A literatura contemporânea ainda é pouco conhecida, considerando as dimensões do Brasil (e considerando a parcela leitora, o que restringe mais). Se você pedir que qualquer cidadão leitor nomeie escritores brasileiros, é quase certo que ouvirá como resposta Machado de Assis, Clarice Lispector, Graciliano Ramos ou outro autor clássico. É raro que apareçam nomes contemporâneos, gente que está vivinha e produzindo agora. Claro que, entre círculos de leitura especializada e na nossa bolha confortável de leitores viciados, os mais “famosos” vão surgir aqui e ali. Para o grande público – o grande mesmo, que vez ou outra pousa em uma livraria e leva alguma coisa – ainda inexistimos.
Não que seja tudo uma terra arrasada. Há progressos notáveis, e trabalhamos todos os dias para mudar esse cenário, contando com a ajuda inestimável dos livreiros, dos clubes de leitura e dos influenciadores digitais. Mas escrever não traz nenhuma glória e nenhuma fama rápida, por mais que algumas pessoas possam pensar ou desejar isso. Vejo isso no meu cotidiano. Para grande parte dos meus amigos e da minha família, eu sou a única escritora brasileira viva que eles já leram, e isso só porque me conhecem. O meu mundo de referências, que é quase todo formado por autores contemporâneos, é estranho a eles. Pegue a própria antologia O dia escuro como exemplo: a escalação da antologia é digna de uma copa do mundo da literatura feita por mulheres, fiquei muito orgulhosa ao ser publicada ao lado de autoras que admiro tanto, como Andrea Del Fuego, Maria Valéria Rezende e Socorro Accioli. Tentei explicar para algumas pessoas o tamanho do meu orgulho em fazer parte desse grupo. Bom, eu só reconheço seu nome, brincou uma amiga minha. E olha que a antologia também tem um conto da Lygia...
É preciso colocar as coisas na sua devida proporção. Escrever e publicar livros provavelmente não vai te deixar rico e famoso. É um trabalho duro, com frequência ingrato. Se você tem curiosidade de saber quanto vende um autor nacional, em números, eu revelei isso aqui (o texto é fechado para assinantes pagos, aproveita e faz a sua assinatura aí, presente de ano novo...).
Colocar as coisas em perspectiva é importante até para avaliar o nosso próprio progresso. Se eu participo de um evento e vendo dez livros, já saio comemorando que o evento foi um sucesso. Ter uma newsletter no Substack com 100 assinantes é um feito e tanto. Publicar um texto em uma revista e ser lido por cinco pessoas já é alguma coisa. Porque a vida de quem escreve, no Brasil, é um enorme exercício de paciência, que não obedece aos ritmos famintos das redes sociais. Tudo é pequeno, devagar e aos poucos.
É justamente pelas dificuldades que precisamos do apoio da nossa gente. É inconcebível que alguém da nossa laia não nos leia. “Ah, Fabi, mas é que o gênero que eu escrevo não é muito popular no Brasil, não tem gente fazendo”. Mentira! Nós temos gente fazendo de tudo, e com muita qualidade. Temos ficção científica, temos fantasia, suspense, romance policial, autoficção, romances literários de grande envergadura... É só procurar. O pior argumento, no entanto, é dizer que até lê literatura nacional, mas acha que “nada é bom”. Quando escuto esse tipo de coisa, sempre fico pensando: então você vai fazer melhor, alecrim dourado do campo???
Não que a literatura brasileira seja perfeita, estamos longe disso e nem tudo que é publicado reluz a ouro. Mas eu sempre prefiro aplaudir o trabalho de alguém que foi lá e colocou a sua cara a tapa. Porque é difícil. É difícil para burro, e de várias formas exaustivo. O mínimo que uma pessoa escritora pode fazer é apoiar e prestigiar quem está no corre há mais tempo. Não só pelo apoio moral, mas também para aprender.
Eu me lembro que, há uns vinte anos, quando já sabia que queria ser escritora, um dos meus passatempos favoritos era ler a biografia de autores nacionais, especialmente os autores publicados pela Companhia das Letras, casa editorial que era meu sonho de consumo. Eu basicamente morava no site da Companhia, vasculhando a sessão de autores. O meu objetivo era entender quem eram aquelas pessoas e como elas chegaram ali naquele lugar tão prestigiado, que parecia inalcançável para uma garotinha goiana do interior do interior. Não lia apenas as biografias, é claro, também lia seus trabalhos, e foi assim que conheci meus primeiros mestres. Vocês não sabem o quanto fico feliz ao ver que, hoje, tenho uma página lá (desatualizada, por sinal kkk). Acho que é por isso que também sigo escrevendo. Um dia, quem sabe, eu seja a referência de alguém.
Em resumo: não é fácil. Há muitos dias em que me sinto cansada e rabugenta, e por mais que às vezes me dê vontade de largar essa vida de mão vejo que trabalhei muito para desistir agora. Sei que talvez eu precise escrever mais uns quatro livros (ou nascer de novo) para conseguir a projeção que eu gostaria, talvez nunca consiga, mas não estou com pressa, já aprendi que a pressa não me serve mais. Eu gosto de escrever. É a minha coisinha. E também gosto de prestigiar e aprender com as pessoas que escrevem. Somos um bocado esquisitos, né? Mas não estamos sozinhos nessa. Nem deveríamos ter a ilusão de que estamos. Os escritores de ontem alimentam os de hoje. É assim que seguimos.
Recados da paróquia
Esta é a última newsletter do ano. Retornamos em breve. Vai depender do meu estado de espírito pós festa de ano novo (na qual passarei grávida, sóbria e com uma pequena profeta do caos chamada Isabel). Desejo uma passagem de calendário tranquila para todo mundo e agradeço todos vocês por ainda estarem aqui.
E é aquela coisa, né: o mês nem virou e eu já não posso gastar nada em janeiro. Se você quiser me pagar um cafezinho de fim de ano, o e-mail fabiane.c.guimaraes@gmail.com é chave PIX. Você também pode assinar a sessão paga desta newsletter, com desconto de 10%, aqui, e ler os conteúdos fechados (tem muita coisa boa e útil). Se preferir não usar o cartão, utilize o QR Code abaixo para fazer sua assinatura anual via PIX (depois é só me mandar mensagem que eu libero o acesso na hora).
Muito boa reflexão, Fabiane. A única coisa que me questiono é sobre autores não citarem colegas. O que eu mais vejo por aí são autores que citam apenas amigos do seu círculo, gente que faz parte da mesma bolha. Desconfio que, em alguns casos, não é porque gostam dos livros, mas porque gostam de retroalimentar espaços de privilégio do qual eles mesmos fazem parte. Livros que já nascem com resenhas em veículos enormes, antes mesmo de ir para as livrarias. Resenhas escritas por... amigos. À parte isso, concordo e aplaudo tudo o que você falou. A literatura brasileira contemporânea tem muita coisa boa e, como escritores, também temos a missão de fomentar o aumento do público leitor.
Olá, Fabiane. Concordo totalmente com você. Temos que cada vez mais prestigiar escritores brasileiros contemporâneos. Precisamos também furar nossa própria bolha. Acredito que cada uma de nós, escritoras contemporâneas, que dão murro em ponta de faca diariamente para conseguir mostrar nosso trabalho, nos esforçamos para fazer uma parte, ainda que mínima. Eu falo de escritoras contemporâneas na minha newsletter aqui mesmo na plataforma, chamada "Isso não é coisa de mulherzinha", assim como nas minhas redes sociais, onde leio trechos de livros publicados por autoras contemporâneas. Um pouquinho por dia, a gente vai fazendo uma rede, pequena, porém importante para este trabalho de valorização e divulgação. Beijo.