Em janeiro deste ano, testei positivo para um bebê. Passei tão mal no fatídico primeiro trimestre de gravidez que, pela primeira vez na vida, me senti como uma pessoa que não escreve. Enquanto vomitava, às vezes mais de uma vez ao dia, a ideia de escrever nem passava pela minha cabeça. Minha mente era um vazio completo de vidas e vozes alheias. Eu só conseguia pensar no quanto estava me sentindo péssima. Também não consegui ler quase nada. Dali a alguns dias lançaria meu novo romance, Como se fosse um monstro, mas nem isso foi capaz de me empolgar. Fiquei deprimida. Parece que fui envenenada, desabafei ao meu marido. Meu maior medo era que a vontade de escrever não voltasse nunca mais. Será que eu tinha perdido meu dom?
Tenho dessas ansiedades, um terror absoluto de me esgotar. Por escrever desde a infância, já abracei a atividade como o meu superpoder ou minha boia de salvação. Nos períodos mais difíceis da vida, foi o conforto da ficção que me ajudou a seguir em frente. Não que eu seja imune aos bloqueios. Já enfrentei algumas fases estéreis do ponto de vista criativo, é claro. Longos meses e até anos em que não escrevi nada, nem uma linha sequer. Nunca me senti como se tivesse abandonado o navio, no entanto. Talvez porque continuasse escrevendo, já que sou formada em jornalismo e esse é essencialmente meu ganha pão. Mas, também, porque a escrita acontece também na contemplação. Primeiro, a gente escreve em pensamento.
Digo que estou fazendo um livro, mesmo que as horas que dedique para isso ainda sejam poucas, porque o livro nasce primeiro de uma vontade, às vezes uma ideia que nem é ideia direto, e sim um embrião. Ficar ali matutando a possibilidade de uma história é a marca maior de uma pessoa escritora, muito antes de se debruçar sobre o papel. Por isso fiquei tão mal no primeiro trimestre de gravidez: de repente, minha cabeça tinha se tornado um deserto. Eu não conseguia sequer pensar em inventar. Acho que o hormônio Beta HCG foi capaz de me tirar, temporariamente, da casca de artista. Me senti muito infeliz. Não quero voltar a ser assim tão sozinha.
É claro que os efeitos já passaram. Agora, na reta final de gravidez, acontece o fenômeno oposto. Estou explodindo de produtividade. É como se a vida que cresce dentro de mim estivesse injetando uma nova energia, fermentando a criação, mesmo com todo o cansaço físico que arrasto por aí feito uma corrente. Não por acaso, comecei a escrever dois livros diferentes (ainda não sei qual deles vou priorizar, então vou escrevendo algumas linhas de cada um). Limitada pelos novos contornos do meu corpo e pela lista infinita de coisas que amo, mas não posso mais fazer – que incluem tomar vinho e comer sushi – escrever tem sido, mais uma vez, uma espécie de refúgio. O problema é que minha filha nasce em cerca de três meses. Sei que, no puerpério, tudo vai mudar. De novo.
Confesso que estou com medo das minhas palavras sumirem mais uma vez, de me tornar um campo inóspito onde nenhum acontecimento de mentira floresce. Foi o relato de maternidade da escritora Jazmina Barrera, o maravilhoso Linea Nigra, que me deixou mais tranquila. No livro, ela conta que após o nascimento de seu filho Silvestre (o marido dela é o Alejandro Zambra), costumava escrever enquanto amamentava, usando o bloco de notas do celular. Como uma pessoa que recorre muito ao bloco de notas também, fiquei aliviada. Pelo menos, ela não perdeu a vontade. Logo penso: há muitas escritoras que vieram antes de mim, e muitas delas também foram mães. Shirley Jackson teve quatro filhos. Elas me dizem que eu vou dar um jeito, porque foi isso que fiz a minha vida toda. Porque é isso que nós, mulheres, fazemos o tempo todo.
A questão do tempo para escrever é sempre muito relativa. A maior parte dos escritores brasileiros contemporâneos que conheço não dispõe dele com abundância, mesmo aqueles que estão em estágio mais avançado na carreira. Porque a verdade é que a gente ganha pouquíssimo dinheiro com literatura, então ocupamos nosso tempo com outros trabalhos – afinal, os boletos precisam ser pagos. Também é preciso colocar na conta as obrigações domésticas, os filhos, pais idosos, questões de saúde e os compromissos inadiáveis de uma vida adulta. Tirando alguns gatos pingados sortudos, a ideia de artistas que tiram sabáticos para escrever é uma raridade no Brasil. Quando é que a gente escreve, então? Quando dá.
Acostumar-se a essa ideia de que nunca vai haver um momento perfeito talvez tire um pouco o peso de precisar de um espaço na agenda. Se não é possível sentar a bundinha para escrever no computador, é reconfortante recorrer a outras ferramentas. Como eu mencionei, o bloco de notas do meu celular é uma mão na roda: anoto ali ideias urgentes, frases legais, possíveis títulos, e já até escrevi capítulos inteiros que me surgiram em horas inadequadas. Em casos de emergência, escrevo à mão (embora não goste). Quando não me sinto pronta ainda para jogar a história no papel, quando ainda não sei direito que forma ela terá, penso nela obsessivamente. O bom de escrever em pensamento é que dá para fazer isso em qualquer lugar, até na fila do banco.
(Abro aqui um parênteses literal para dizer que estou lendo o ótimo livro de ensaios da Ursula Le Guin, que acabou de ser lançado pela editora Aleph, Sem tempo a perder. Em determinado momento, ela descreve seus escritos como palavras escutadas “pelo ouvido da mente”. Fiquei apaixonadíssima por essa expressão. É a mais perfeita definição do que é escrever: escutar do lado de dentro. Fecho os parênteses.)
Hoje em dia, escrevo aos fins de semana, em geral sábados ou domingos de manhã, que é quando não preciso trabalhar. Antes, quando era uma pessoa menos cansada, escrevia muito de madrugada. No passado, desviei muitas horas de trabalho CLT para escrever ficção. Já escrevi no banheiro de um bar, inspirada por alguns cigarrinhos suspeitos. O pobre do meu marido também sabe que, quando estou trabalhando em alguma história, é melhor não me incomodar – quando pego ritmo, não paro nem para comer. Estou bastante acostumada a fabricar o tempo.
Dito isso, preciso ressaltar uma coisa. Nunca vai existir um cenário ideal, é verdade, mas a pessoa também precisa se dedicar, separar momentos para isso, o que significa às vezes sacrificar outras janelas de respiro, talvez um filme ou um momento com os amigos, ou mesmo uma sagrada hora de folga em que poderíamos estar fazendo qualquer outra coisa menos sofrida. A pré-escrita que acontece na cabeça também é válida, no entanto o exercício de pular para o papel é fundamental. Só então as barreiras começarão a existir, e só dá para trabalhar com o que existe, é meu lema pessoal. Vai valer a pena? Às vezes, não. Mas essa é a nossa sina. É o que a gente gosta. Se não fosse assim, eu não estaria aqui, escrevendo esse texto, em vez de entregar o freela que vai pagar a conta da internet.
Antes de ir embora...
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lembrei do relato do moacyr scliar, que era médico, profissão que impedia que tivesse rotina. atendia o telefone e voltava de onde tinha parado. me ocorreu que os teclados bluetooth se ligam no celular, e imaginei um combo de nenê e teclado na barriga, o celular na vertical encostado num copo, na mesa lateral... acho que dá rock, hein?
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