
O e-mail chegou no meio de uma manhã difícil. Suas lembranças desse dia, veio me avisar a Microsoft, jogando na minha cara uma versão do meu passado, dez anos mais jovem e muito bem vestida, passeando por Nova York. Foi ridículo rever essas fotos com a camisola encharcada de leite e o rosto desfigurado por várias noites seguidas sem dormir, segurando uma bebê com crise de gases e sustentando nas costas essa bomba de sentimentos controversos. A última coisa que uma mulher no puerpério precisa é ser lembrada de sua vida anterior. Sim, em março de 2015 eu era livre, tinha um ótimo salário e passeava pela ponte do Brooklyn ao pôr do sol. Agora sou freelance, mãe de duas meninas e só consigo ir à padaria. Há dias em que a saudade dessa mulher que eu era me deixa levemente arrasada. Dias em que preciso me lembrar, várias vezes, que as escolhas deixadas para trás são sempre sedutoras porque já foram vividas, e a memória seleciona muito bem os seus triunfos.
A verdade é que eu não era mais feliz em 2015. Estava batendo o queixo de frio quando tirei aquelas fotos e, embora exalasse uma riqueza momentânea, na verdade o dinheiro estava tão contado que almoçava maçãs. Foi a minha viagem dos sonhos, não nego, e sonho muito em voltar. Mas ainda me lembro do vazio, das ausências que carregava, uma necessidade de ter um ninho, um canto fixo no mapa. Eu me sentia uma coisa avulsa e perdida, existir não fazia o menor sentido. Desde que as minhas filhas nasceram não sei mais o que é sentir essa forma de desamparo. Elas remendaram a minha alma. Se agora me ressinto pela liberdade perdida, naquela época eu me corroía de solidão. Não troco isso aqui por aquilo lá nunca.
Ainda assim, é claro, sofro e me atormento em momentos periódicos, lambendo as feridas dos meus sacrifícios de agora. A maternidade é o papel mais difícil ao qual precisamos nos adequar, porque o amor absoluto envolve a completa desfiguração do eu. Não ser mais única dói. Perder vivências também. O puerpério é um luto sufocante e quente. Os meus dois puerpérios aconteceram entre levantes recordes de temperatura, e o resultado é que agora associo esse tipo de tristeza ao calor. A minha melancolia materna tem cheiro de crise climática.
Quando voltei a aparecer por aqui, há umas duas semanas, algumas mulheres mandaram mensagens carinhosas admirando minha disposição para criar durante essa fase tão difícil. O que eu posso dizer é que não sou nenhuma extraterrestre. Além de um hiperfoco óbvio, tenho facilidade em escrever porque faço isso desde que me entendo por gente. Em tempos difíceis, escrevo ainda mais, dou um jeito, porque essa é a minha tábua de sustentação nos naufrágios, por mais breves que sejam os afundamentos. E uma mãe precisa escolher suas prioridades. Lavar o cabelo ou escrever? Muitas vezes escolho a segunda opção.
Uma coisa que a minha versão tem muito em comum com aquela que desfilava pelo Central Park, aliás, é que a outra também escrevia. Se pegasse um avião e atravessasse o tempo para falar com ela, perguntaria em qual livro estava trabalhando agora. Talvez fosse até mesmo o Apague a luz se for chorar. Não sei, porque não consigo me lembrar. A única certeza que tenho é que, se não estava escrevendo alguma coisa, ela pensava em escrever. Essa é a parte mais gostosa de ter certas inclinações criativas: você carrega isso como um amuleto, um segredo que traz muita satisfação, mesmo que não mostre para ninguém, ou especialmente por não mostrar. Ninguém consegue destruir um pensamento que se enverga o tempo todo na direção da arte. Nem aqueles que tentam.
Há muitas estirpes de escritores e eu pertenço à classe dos hiperativos. Acabo uma história, já estou pensando em outra. Acho uma delícia agarrar um projeto, escrever um livro, mesmo que depois amaldiçoe os becos por onde me enfio. Em dias longos e complexos, comprometer-se com a ficção é um alívio. Podem chamar de loucura ou dissociação. Mas pensar em personagens para não pensar no que fazer comigo mesma sempre foi uma forma de suportar a realidade.
Sem falar que eu me divirto, esse é meu grande interesse, fico tateando as palavras com a ponta dos dedos, me dá um barato muito grande encontrar um lugar para cada uma. Também pratico a dissociação via leitura, claro. Se não leio, surto. Mas a leitura é para os momentos de cansaço. Escrever as minhas próprias histórias supera tudo. No começo tento não me questionar demais, nem imaginar o que vou fazer depois, se é válido insistir nessa ou naquela alucinação. Enquanto ainda estão assim, em estado de embrião, as alucinações se justificam todas, porque são puro suco de existência. As ideias nascem muito lindas. Depois é que as coisas se complicam. O que parece muito com um puerpério, para dizer a verdade. É terrível ver o seu romance, perfeito e adequado em teoria, começar a ter cólicas.
A boa notícia é que, em qualquer um dos casos, as dúvidas e os terrores passam. Criar envolve enfiar as mãos na mais assombrosa das dualidades, esse terreno onde tudo é incerto porque ainda não é inteiro. E me parece natural, em um caso e no outro, que a gente se sinta tão perdida. Milhões de pessoas criam crianças, milhares escrevem livros, mas na nossa vez parece sempre a inauguração do mundo — talvez porque de fato seja.
lembrei de mim mesma uns anos atrás, da vida cheia de "glamour" das viagens no mercado corporativo, do salário alto que sempre sobrava bastante (e nem lembro mais o que fazia com aquilo, mas sei que tinham muitos gastos bobos e compensatórios no cartão de crédito), mas também do stress que nunca acabava, das expectativas nunca alcançadas... parece outra eu. às vezes tenho saudade dela. mas na maior parte das vezes, prefiro meu eu de hoje. até porque, aquela antiga eu, não escrevia. era escrava de um sistema opressor. mesmo com muito privilégio. enfim. seguimos!
No começo eles dependem muito da gente; depois de um certo ponto, ganham vida própria. Com os filhos, é assim para todo mundo; e com os livros? Foi assim para mim na única ficção em que me arrisquei por enquanto. É assim para você também?