✍️ Amo escrever, amo ter escrito e a IA não vai me roubar isso
Porque o processo é a parte boa

No último sábado tive um debate acalorado com meu marido sobre a onipresente tecnologia que concentra o desprezo de artistas no mundo inteiro. Com sua mente pragmática, ele se entusiasma com as novidades e acredita que a inteligência artificial será muito útil para escritores, tão útil que passará a fazer parte do processo criativo. Para o João, é certo que essa tecnologia evoluirá a ponto de ser treinada com a sombra das nossas próprias palavras. Será possível ensinar a lógica de um pensamento narrativo até que a máquina consiga preencher lacunas, de um jeito tão orgânico que ficará indissociável do manual. Não discordo dele, também acho que esse é o destino mais provável, mas reforcei veementemente que jamais usarei a ferramenta desse modo e tenho certeza que o robô seria incapaz de escrever como eu, ainda que aprendesse minha forma de inventar. Eu me recuso a acreditar que esse vai ser um recurso genuinamente criativo, por mais sofisticado que pareça. Você está sendo puritana, ele brincou. Sim, talvez eu esteja. Talvez eu queira ser, nesse aspecto, uma velhinha rabugenta que se agarra aos seus princípios analógicos.
Você vai poder escrever um romance muito mais rápido — insistiu o João.
Eu não quero escrever rápido. Por que eu faria isso? — respondi.
Tem uma frase supostamente cravada pela Dorothy Parker que diz assim: “odeio escrever, amo ter escrito”. Não é meu caso. Eu amo escrever, amo ter escrito, e ao refletir sobre tudo isso cheguei à conclusão que os meus livros são muito menos importantes do que quem eu fui ao escrevê-los: se hoje são lidos e apreciados, é porque já foram requisitados pelos leitores e não me pertencem mais. Eu não escrevo para gerar um produto. Se estivesse interessada nisso, escolheria produtos mais rentáveis, dada minha situação financeira atual. Não, continuo aqui sonhando e cutucando o umbigo das minhas obsessões porque aprecio o gesto de pensar, que é muito mais complexo que uma operação de busca de dados. Só faz sentido ficar alucinando sozinha se for para seguir essa linha de raciocínio que é toda curva, se perde em florestas estranhas e quando começa não sabe para onde vai.
Não sou uma das pessoas mais pessimistas, veja bem, dessas que olham para a tecnologia e têm vontade de construir um abrigo para se enfiar quando o mundo acabar de vez. Tenho talento para a resignação. Como escrevi aqui antes, uso bastante as ferramentas de inteligência artificial nos meus trabalhos como freelance, sei que elas vieram para ficar e que vão ficar ainda mais espertas. Até gosto do negócio. Aprendo tudo que posso, no melhor estilo “junte-se ao inimigo”, e utilizo a ferramenta para atividades banais do dia a dia, como fazer contas, pegar receitas e complementar interpretações de tarô. No meu espaço literário, entretanto, os robôs não entram. Aqui não há nada a contribuir, nada a aperfeiçoar, porque nem eu mesma sei o que estou fazendo, e quando descobrir não precisarei de ajuda. Na criação estamos todos perdidos, mas ninguém está acenando para um resgate.
Pessoas não criativas não entendem a nossa sanha. Não sabem que o processo é uma delícia, que não queremos abrir mão de ter esse prazer estranho de formar uma ideia e ir costurando o caminho. Tenho pena de quem nunca vai sentir o coração acelerado por ter construído a frase perfeita. Ou de nunca entrar em um estado praticamente hipnótico ao descrever uma coisa que só acontece dentro da sua cabeça. Ficção, do latim fictio, do verbo fingire, é o ato de fingir. É possível tirar grande satisfação do mais absoluto fingimento.
Uma das minhas tristezas irreversíveis é que a arte seja uma das primeiras frentes a ser atacada nesse progresso high tech. Ao gerar imagens e textos com uma velocidade absurda, consultando um repositório covarde e ilegal de experiências alheias, eles estão dizendo com escárnio que somos substituíveis porque tudo isso que fazemos é muito fácil de fazer.
Ainda assim, guardo esperanças de que a literatura possa sobreviver. Mesmo que seja treinada seguindo os passos de artistas do mundo inteiro, entre os mortos e os vivos, a IA jamais vai adquirir o impulso espiritual que permite a interpretação da nossa humanidade. Ela não será capaz de produzir a beleza que só é vista porque foi minuciosamente sentida. Outro dia terminei a leitura de um dos livros mais bonitos que li na vida, e que fala muito sobre a dedicação do artista: O primeiro sonho do mundo, de Anne Sibran, que imagina o encontro entre o pintor Paul Cézanne com um oftalmologista famoso por curar a catarata. O romance tem passagens belíssimas, como esta aqui, que narra o processo de uma pintura a partir da visão do pintor. Vou deixar para quem quiser conferir:
(O dia em que um robô escrever desse jeito bonito eu me entrego)
Falando sobre os aspectos técnicos da escrita literária, acho que o caminho dessa reinvenção pode nos tornar autores melhores. Já escrevi aqui sobre como os textos gerados pela IA pesam a mão no clichê. O clichê arranca a atratividade de um texto. E as marcas da inteligência generativa soltam o cheiro de longe — entre elas, está o apego a estruturas convencionais e quadradas, corretas na essência, mas esvaziadas de alma. É como uma pessoa que se mete a instalar dentes de porcelana, abandonando o charme de um dentinho torto.
Charme é marca autoral. Voz narrativa é expressão. As escolhas estéticas utilizadas para conduzir uma história vão ganhar importância ainda maior. As palavras que você escolhe com cuidado farão ainda mais sentido, porque se o ChatGPT consegue alcançar o mesmo arranjo, então provavelmente não será um arranjo bom. Estou falando de textos sem graça e sem surpresas, que começam narrando o clima de forma insossa, por exemplo, ou que utilizam expressões batidas como “uma paixão avassaladora”.
O caminho é desconstruir. Ir além do que está posto. Cutucar os substantivos, trocar os adjetivos de sala, procurar imagens inusitadas, e essa prática já pode começar desde agora, na escrita de uma newsletter que seja. Pense em como começar, então comece de outro jeito, porque o primeiro pensamento é sempre mais óbvio. Além da forma, também será preciso repensar o conteúdo. Teremos que explorar as camadas dos nossos personagens e exorcizar os diálogos explicativos, encarnando de vez a habilidade de escrever sem dizer com todas as letras.
Estou lendo no momento Uma visão pálida das colinas, primeiro romance de Kazuo Ishiguro, que a Companhia acabou de publicar. O que eu mais gosto do Ishiguro é a densidade emocional que seus personagens carregam, mesmo que nada precise ser dito diretamente. Na obra dele tudo fica subentendido, insinuado, disfarçado sobre camadas de rigidez social, e é por trabalhar tão bem essas nuances que ele é meu escritor favorito.
Para superar os robôs que muito em breve vão conseguir emular os cantos mais particulares da mente, como acredita o meu João, será preciso confiar na capacidade humana de criar contexto. Além de apostar, sempre, na unicidade de cada experiência. Inventar um outro jeito de fazer o que já foi feito, o nosso jeito. Eles nunca vão nos pegar porque estamos acordados, mas estamos sonhando, porque temos uma cabeça plantada no mundo invisível — e porque sabemos fingir.
"Ah, mas pq as IAs vão acelerar o processo e blá blá blá..."
Oxe, quem tá com pressa que corra. Me deixa aqui às sombras das árvores com as minhas palavras.
Por qual motivo as pessoas querem que tudo seja feito tão rápido? Que diferença faz para o mundo a IA ter escrito um texto em 1 min e uma pessoa ter escrito em 3 horas?
Desde quando o tempo virou mais importante que o conteúdo?
E o que vamos fazer com esse tempo que economizamos? A IA faz meu texto em 1 min e eu tenho mais tempo para ficar no celular durante 3/4 horas? É para isso? Sinceramente, que merd4.