Com exceção de alguns medalhões banhados a ego, toda pessoa que escreve conhece aquela dúvida que bate no meio do trabalho, principalmente se for um projeto longo. Será que isso aqui está bom? Será que vale a pena investir mais tempo, suor e raiva? A pergunta pode crescer e se tornar um monstro, emperrando todas as ambições. Pode ser o motivo de tanta demora para concluir um simples manuscrito. Pode enterrar histórias inteiras na gaveta, até que um olhar mais caridoso a ressuscite. Vivo essa realidade desde que comecei a escrever e já entendi que não melhora com o tempo. Claro, vamos ficando mais confiantes nas próprias habilidades, mas a verdade é que escrever ficção também envolve marcar um encontro com a própria insegurança. A autocrítica é quase um mecanismo de defesa, um apêndice evolutivo da criatividade, que restou no corpo para salvar a gente do ridículo de fracassar.
Se você for uma mulher, a autocrítica tem também a tendência de ser mais rigorosa do que o normal. Não estou aqui tentando militar pela questão de gênero, por mais que seja uma militância pessoal. É apenas a simples constatação, como uma mulher que escreve e vive isso todos os dias. Os homens que escrevem também duvidam de si mesmos, fazem isso o tempo todo. A diferença é que, por mais que titubeiem, vejo nos escritores uma coragem que não foi ensinada às mulheres: eles sabem que tentar não é uma humilhação. Encaram os desafios com naturalidade, porque sempre foram ensinados a escalar montanhas e cair e levantar, ao contrário das meninas, a quem poucas pessoas deram o crédito da confiança. Então, sim. Se você for mulher, são bem maiores as chances de que não ache que um texto esteja bom, mesmo quando ele estiver.
Tenho algumas técnicas para lidar com esse sentimento invasor. A primeira delas é não ouvir o diabinho sobre o ombro, até que tenha um material significativo para avaliar. Isso porque, quando a gente entra nessa pilha de que está tudo ruim, nunca termina nada e, portanto, não tem sequer um comparativo para levar em conta. Todos os escritores competentes já fizeram coisas ruins. Pelo amor de deus, acabaram de publicar um manuscrito inédito do García Márquez que ele mesmo dizia ser uma bosta! Se o García Márquez tinha autocrítica, então é sábio que a gente também tenha. O que não é sábio é ficar paralisado por ela – ele, infelizmente, não teve tempo de acarinhar seu trabalho. É uma pena.
Grande parte da produção literária reside na edição e reescrita. Tem coisa que está ruim, mas pode ficar boa. Essa ideia de que os textos nascem perfeitos e redondos é uma herança bucólica e mentirosa de outras épocas. A verdade é que escrever é um trabalho de persistência, e que o caminho de uma ideia ruim às vezes leva a outra que é boa. O livro que sai meio torto na primeira vez pode vingar na segunda. Eu sei que todo mundo quer escrever uma obra-prima, e a gente se esforça para isso, mas é bem provável que de primeira saia alguma coisa apenas razoável, alguma coisa meia boca, e isso não faz de nós escritores terríveis.
Eu amo essa frase do James Baldwin, porque resume tudo: “O talento é insignificante. Conheço um monte de ruínas talentosas. Para além do talento estão todas as palavras do costume: disciplina, amor, sorte, mas, mais que tudo, resistência.”
Dito isso, eu também queria dizer que acredito nas ideias que devem ser abandonadas.
Tipo aquele relacionamento que você tenta, tenta, mas vê que não vai para lugar nenhum, então é melhor terminar. Dói entender isso, mas é uma libertação deixar ir embora. Nesse caso, minha estratégia para definir se continuo escrevendo ou se deixo para lá é medida pelo tempo: quando estou de bode, deixo a história alguns meses marinando na gaveta, e só depois pego para reler. Se depois dessa triagem ela ainda assim não agradar, é de fato um caso perdido. Mas pode ser que aconteça o oposto. Meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar, ficou na gaveta por um tempão, até que eu peguei para reler e não odiei. Pelo contrário.
Também tem a valiosa contribuição dos nossos leitores beta, embora eu só acione a minha leitora quando tenho algo maior na mão (vou gastar o tempo da Mariana à toa? Ela tem um restaurante imaginário para gerenciar). Também confio muito na palavra da minha agente e dos meus editores. O terceiro olhar pode ser o prego no caixão, ou um bote salva-vidas.
Até que chegamos ao elemento mais importante de todos: o coração.
É meio brega colocar assim, mas as coisas que escrevemos com o coração saem muito melhores. Podem não ser tecnicamente perfeitas – ninguém aqui é um gênio – mas são comoventes. Existem os textos corretos, racionais e pragmáticos, e existem aqueles que a gente escreve sentindo. Eu sou escritora e jornalista, tenho mais de uma década de experiência nas costas, e costumo brincar que posso escrever sobre qualquer coisa (e posso mesmo, tenho uma lista muito engraçada de trabalhos). A minha habilidade técnica de encher linguiça ou produzir parágrafos a toque de caixa não é nada perto de quando resolvo escrever colocando minha alma para jogo. Não estou falando de escrever sobre minha vida, estou falando de escrever a partir de um olhar pessoal. Um olhar carinhoso, de quem se importa. De quem é obcecado. Mais do que o apuro e a sofisticação da linguagem (coisas que podem ser atingidas mais tarde), acho que um texto com alma é o grande segredo para fazer alguma coisa minimamente boa.
Data do Drink and Write
Após uma votação apertada, saiu a data e o horário da nossa próxima oficina de escrita prática: será na próxima quarta, dia 20, às 20h. No Drink and Write, como o nome já diz, as regras são simples: você leva uma bebida, a gente sorteia um tema e escreve, sem pensar muito a respeito e sem julgamentos. É um excelente exercício para destravar e praticar. Estou muito empolgada para rever vocês e também escrever! A participação é exclusiva para quem apoia a newsletter, então considere assinar por apenas R$ 9,99 ao mês clicando aqui.
para mim, tão difícil quanto saber se ficou bom é determinar se o texto está pronto. o que ocorre, geralmente, é que o "pronto" chega sempre com o fim do prazo. quando não há prazo, parece que o texto nunca termina de ser escrito.
Como jornalista e escritor em construção, me identifiquei demais com essa parte sobre a "lista de trabalhos", eu que já fiz texto de vinho a mercado financeiro.
Seguiremos desafiando a síndrome de impostor.