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Eu e João, meu marido, começamos a ver o ótimo documentário Império dos Chimpanzés, que mostra as complexas dinâmicas da maior comunidade de chimpanzés já encontrada no mundo. É surpreendente ver como eles se organizam, se dividem e fazem alianças para preservar o território onde vivem, em uma floresta da Uganda. Em um determinado momento, o documentário explora a catação, um hábito social imprescindível para a construção de vínculos. Chimpanzés que não participam da cuidadosa atividade de catar parasitas, nem têm quem afague seus pelos, são excluídos e isolados da comunidade. Acabam marginalizados, o que em última instância dificulta sua sobrevivência. A mensagem do grupo é clara. Sozinho, ninguém triunfa.
Como já contei aqui, cresci no interior de Goiás e, durante minha adolescência, desconfiei seriamente que não fosse muito normal. Eu não conhecia ninguém que gostasse de escrever e passasse tanto tempo pensando em livros e pessoas de mentira, como acontecia comigo. A minha conclusão é que eu só podia ser meio doidinha das ideias. A falta de referência me deixava ainda mais preocupada.
Foi no Orkut, entre 2004 e 2005, que encontrei pela primeira vez outras pessoas que também escreviam, e me senti como se pertencesse a um lugar. De repente, eu não estava mais sozinha. Tinha gente tão ou mais perturbada que eu em comunidades de jovens escritores, que passavam grande parte do tempo trocando textos e ideias de livros, em uma espécie de catação literária. Ali, fiz amigos que seguem na minha vida até hoje, entre eles o Raphael Montes. Foi ele, inclusive, quem me apresentou para a Alfaguara, que hoje publica meus livros.
A experiência de conhecer outras pessoas que escrevem é sempre revolucionária e eu tive muita sorte de começar cedo, em uma idade em que o tempo não precisava ser distribuído em tantas camadas de obrigações. É por isso que não gosto quando as pessoas deduzem que o meu “começo” como escritora foi a partir da publicação do meu primeiro livro, ou que estreei na Companhia das Letras depois de cair do céu. Tudo que veio antes importou. Inclusive as conexões que fiz, porque elas me mostraram que não havia nada de errado em querer escrever.
Os começos, no entanto, podem ser difíceis em um mundo algorítmico. Criador, hoje em dia, virou outra coisa. Se você não faz alguma coisa com um propósito claro, então não vale a pena fazer. Sinto que a galera tem muita vergonha de admitir que gostaria de escrever ficção. Isso acontece por algum motivo que ignoro, talvez a configuração sociocultural brasileira, na qual a leitura ocupa um espaço medíocre. É até engraçado quando as pessoas me puxam para um cantinho escuro e confessam, com os olhos meio baixos, que também queriam se aventurar na criação, como se fosse um segredo maculoso. Isso é mais comum entre jornalistas e pessoas do universo das letras, mas também acontece com gente de outras profissões. Às vezes, eu pergunto por quê. Por que você não escreve, então? A resposta quase sempre é falta de tempo, falta de motivação, ou simplesmente uma falta de confiança.
Outro dia, um leitor aqui da newsletter me enviou um questionamento: o que fazer para desenrolar um projeto ficcional? Sei que é muito fácil para mim, que já faço isso há muito tempo, dizer que é simples, que é só abrir a página do Word e mandar bala. Escrever ficção, no entanto, é como um músculo que, quando não exercitado, atrofia ou sequer se desenvolve. Não dá para pedir a uma pessoa que nunca foi a uma academia, por exemplo, que já comece puxando uns ferros sinistros. Portanto, acho sim que é preciso começar de algum lugar, e começar depende de espantar a vergonha, o medo do ridículo e investir nisso uma grande força de vontade. Algumas coisas podem facilitar. Entre elas, conhecer outros chimpanzés.
Ao olhar para trás, para o meu próprio começo, penso que gostaria muito de ter feito uma oficina de escrita. Acho que teria me ajudado muito a entender minha identidade literária, sem passar tantas horas batendo cabeça com o drama das comparações e as incertezas da criação. É claro que, há uma década, oficinas assim eram menos frequentes, e além de tudo eu não tinha dinheiro. Mas hoje as coisas são diferentes e essa é uma dica que dou agora para quem quer destravar a escrita (nada como o chicote de um professor e o estímulo de outros colegas). Várias plataformas oferecem atividades assim. De cabeça, lembro da Escrevedeira e da Lugar de Ler. A oficina do Luiz Antonio Assis Brasil também é conhecida por parir vários talentos da literatura contemporânea. É um ambiente precioso não só para desenvolver a própria escrita, mas conhecer pessoas que podem ajudar a fazer disso uma profissão.
Para além do convívio e dessa aproximação com pessoas que escrevem, também é urgente calar a voz da dúvida. Porque, quando se trata da escrita ficcional, o mais comum dos embates é interno. A pessoa pode até ser experiente na escrita de outros tipos de texto, mas a ficção é um território assustador. Ai, Fabi, será que eu sou boa o bastante? Que me desculpem os adeptos da genialidade, eu sou do time que não acredita em talento, mas em predisposição. Algumas pessoas terão mais facilidade, aprenderão cedo a fazer mágica e chegarão em lugares que outras vão apenas admirar de longe, o que não significa que o peso do esforço seja menor. Quanto mais se escreve, melhor se escreve. É muito mais sobre ficar bom, do que ser bom.
Essa é uma atividade que exige dedicação, disciplina, que custa muito e às vezes não retribui nada. Tem que querer. Mais do que isso: tem que querer melhorar, o que significa encarar as próprias dificuldades e fracassos, entender que algumas coisas sairão bem ruins de primeira, e não se martirizar pelos obstáculos gigantescos que só aparecem na hora dos vamos ver. Como uma vez disse o Gárcia Marquez, “el deber revolucionario de un escritor es escribir bien”. Não dá para se contentar em escrever qualquer coisa e se achar o alecrim dourado por isso. Não vou mentir, é uma tortura. Mas, que é uma delícia, isso eu não posso negar.
Antes de ir embora...
Pensei muito sobre como aproveitar o recurso de assinaturas pagas aqui do Substack. A verdade é que eu não queria parar de escrever conteúdo gratuito, e não vou parar. Mas sou escritora, vivo dos meus corres com as palavras, e escrever os posts demandam de duas a três horas do meu tempo, tirando a edição. Então, nessa semana lancei a opção de apoiar meu trabalho e dar uma forcinha para essa futura mãe sem licença-maternidade à vista. Os textos livres continuam. Quem assinar, no entanto, vai ter acesso a extras que eu juro que vão pagar o investimento de 9,99 ao mês.
Meu objetivo com os posts pagos é trazer informação útil, insights sobre o mercado literário, compartilhar lições preciosas que aprendi no meio do caminho, entre outras reflexões. O primeiro texto é sobre agenciamento literário, e nele conto sobre a minha experiência com agente, além de jogar a real sobre como esses contratos funcionam. Recomendo a assinatura para quem se interessa de verdade por escrita e literatura. E para quem, é óbvio, gosta daqui a ponto de liberar uns dinheirinhos para me ajudar a pagar os boletos.
Alguns links:
Annie Ernaux nas palavras de Rachel Cusk
Estou lendo e adorando esse livro.
Três décadas antes do Chat GPT, Oliver Sacks falou sobre consciência e inteligência artificial
Para começar a escrever
Uma edição pra guardar e reler. 🌹
A postagem caiu como uma luva para a fase que passo agora como escritora! Parabéns pela maneira como escreve, um jeito didático que dá gosto de ler!