Acontece com frequência. Ao me conhecer no mundo “real”, as pessoas que por acaso leram meus livros ficam espantadas. Já ouvi, mais de uma vez, que me imaginavam de uma forma diferente. As coisas que escrevo às vezes podem ser tristes e delicadas, eu sei, mas não sou uma criatura melancólica (ou pelo menos não o tempo todo). Tenho mais camadas que uma cebola roxa e até os meus amigos mais próximos, ao lerem meu primeiro livro, se viram diante de algumas descobertas fundamentais. De onde você tira essas ideias, eles perguntam. E é quase como se confessassem que não sabiam que eu tinha tanto pensamento dentro de mim.
Há muito desisti de vestir uma carapuça intelectual. Isso talvez fosse uma questão na juventude, quando ainda estamos tentando projetar quem gostaríamos de ser, em contraponto a quem realmente somos. Precisei de muita terapia para entender que eu jamais seria uma artista reclusa e misteriosa, do tipo que cita autores clássicos e fuma cigarros com olhos enevoados de conhecimento. Gosto muito de dar risada e falar besteiras, escuto música sertaneja, a depender do nível de entorpecentes posso até dançar um piseiro ou ensaiar uns passinhos de funk. Leio todos os dias, sou consumida pela leitura, mas não falo de livros o tempo todo, nem acho que só são interessantes as pessoas que leem. Às vezes, inclusive, prefiro a companhia de quem não lê, nunca leu nada, passa longe das palavras, e esse também é um planeta agradável. O lugar de onde eu vim modificou meu trajeto e sou grata por isso, porque amplia a minha dimensão da realidade. Aprendi que não preciso ser uma personagem para convencer como escritora. Eu só preciso escrever.
Algumas pessoas nunca vão entender. Tentam me podar ou me enfiar em uma caixinha. Você é uma escritora, você é uma intelectual, tenha juízo, como assim vai escutar esse Gustavo Lima? Outras percebem quando deixo escapar uns pedacinhos desse interior complexo, em uma espécie de trilha de farelos de pão. Até o jeito como você fala é bonito, por isso você é escritora, minha médica disse uma vez. Um amigo psicólogo, ao me flagrar em meu momento mais empático, decretou: você é uma esponja, Fabi. Ele não estava errado. Ao observar o mundo, eu absorvo tudo. É isso que me diz que sou artista, a despeito de como vivo.
Sei de amigos e colegas escritores que precisam viver para escrever, e retiram da experiência cotidiana o material de suas criações. De alguma forma, um estará sempre ligado ao outro, essa coisa de viver e reportar. É a partir de suas percepções e referências que um escritor vai construindo seus castelinhos de ideias. Alguns desses relatos serão sempre pessoais, sempre autobiográficos. Outros passarão pelo decantador da ficção e virarão outra coisa, talvez distante do gatilho de inspiração. São dois métodos honestos e igualmente bonitos de produzir ouro.
Pode ser a minha bolha, mas sinto que estamos vivendo uma onda de apreço à autoficção, impulsionada pelo Nobel da Annie Ernaux e o novo lançamento do Emmanuel Carrére. Gosto muito dos livros da primeira, mas infelizmente nunca consegui me conectar com o segundo. Admiro quem consegue se desnudar desse jeito, eu jamais conseguiria. Não consigo escrever, por exemplo, sobre minhas maiores dores. Às vezes elas aparecem como sombras, deixam vestígios nos meus personagens, mas dentro desse imenso universo que carrego na minha cabeça há compartimentos que prefiro deixar trancados.
Há duas semanas, por exemplo, perdi um dos meus gatos. O meu gato mais dócil e amado, uma parte fundamental da minha família. Fiquei tremendamente abalada, mas ainda vou precisar de um tempo para falar sobre isso. Nessas horas lembro que a palavra “trauma” vem do grego e significa ferida. Eu sou uma pessoa solar e hoje em dia posso até dizer que sou feliz, mas tenho muitas feridas (não é por acaso que o nome dessa newsletter é Tristezas de estimação). Mas ter tristezas de estimação não significa que eu precise falar sobre elas. Às vezes, alimentar já é o bastante.
A questão é que a vida, a vida mesmo, essa que a gente atravessa com dois pulmões e um cérebro consciente, é uma casa de espelhos. Nós somos, ao mesmo tempo, o reflexo daquilo que vivemos e a manifestação de milhares de outras vidas, ecos que se multiplicam nas várias dimensões dos sentidos, porque também é possível viver em forma de pensamento e memória. E ter imaginação permite que a gente viva várias vezes.
Meu dia a dia, a rigor, é muito ordinário. Acordo, faço carinho nos gatos e no marido, tomo meu café, leio alguma coisa, trabalho. Vivo muitas horas trabalhando. Como trabalho em casa e moro longe do centro de Brasília, o famigerado Plano Piloto, às vezes passo dias sem pisar na rua, espiando a realidade pela janela da cozinha, dando ocasionais acenos para o porteiro. Uma pessoa mais expansiva e inquieta poderia ficar horrorizada com essa rotina, achar insuportavelmente solitária. Poderia achar que nada acontece. Ao contrário. Muitas coisas acontecem: acontecem dentro de mim, onde uma bebê com atuais 30 centímetros se contorce no meu útero, e às vezes me lembra que eu não estou sozinha, e não ficarei sozinha por um bom tempo; acontecem nos meus sonhos, cada vez mais realistas; acontecem na internet, onde troco mensagens com colegas cinco horas adiante, na Alemanha. Muito também se passa dentro da minha cabeça, nessa mente barulhenta, que tem ideias o tempo todo. Meu trabalho literário é uma manifestação da minha vida, portanto, mas não apenas dessa vida.
Na semana passada, dei uma entrevista sobre meu novo romance, Como se fosse um monstro, e a repórter perguntou se a personagem principal, Damiana, era inspirada em alguém de verdade, se eu tinha entrevistado mulheres que são barrigas de aluguel. Dei risada. Alguns personagens desse romance são levemente desenhados a partir de pessoas que conheci, mas não a Damiana. Eu inventei, respondi. Acho que esta é a definição daquilo que eu faço de melhor.
Eu invento.
Antes de ir embora, uma petição...
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Oi Fabi! Admiro seu trabalho (ainda não li seu segundo livro, mas ele está na fila!), e não sei dimensionar o quanto eu me identifiquei com esse texto, em milhões de aspectos. Que escrita fluida e gostosa pra se ter logo pela manhã :)
a parte mais mágica de ser escritora é exatamente poder viver uma vida ordinária e escrever histórias extraordinárias. temos um mundo inteiro dentro da cabeça e inventar é uma coisa linda! adorei a reflexão <3
beijos!