Aconteceu no Facebook, aquela rede social meio fungo, que só parece estar morta. Uma ex-professora da UnB, ao comemorar seus vinte e tantos anos de carreira, resgatou uma foto da minha turma de jornalismo, exaltando os vários talentos que saíram dali. Citou alguns: o rapazinho que virou âncora no SBT, o outro que construiu carreira na Globo, a moça servidora do Senado, esse tipo de coisa. Eis que uma colega querida resolveu acrescentar, nos comentários, que a “Fabiane publicou dois livros”. Fiquei imensamente tocada pela lembrança (valeu, Ingrid!!). E me diverti à beça quando a professora respondeu alguma coisa genérica no sentido de “nem lembro quem é, mas que bom para ela”. O que é um dos motivos pelos quais às vezes eu evito falar que sou escritora em certos círculos — é o mesmo que confessar que sou um fracasso da vida prática.
Fiquei refletindo sobre esse episódio, na verdade, porque ele sintetiza algo no qual venho pensando há muito tempo. Sei que a vida profissional que estou vivendo foi uma escolha muito consciente, sei que estou feliz dentro dessa escolha, mas às vezes me pego pensando onde fui amarrar meu bode. Penso se deveria ter continuado a usar meu diploma de uma forma mais útil, ou feito o concurso que minha mãe insistiu tanto para que eu fizesse. Estou pisando no terreno que escolhi, só não tinha ideia de que era feito de areia movediça. Quando olho para o lado, no entanto, vejo que a maioria das pessoas que conheço está na mesma lama (exceto os que fizeram concurso ou seguiram carreiras mais tradicionais na comunicação). E mesmo os “estáveis” parecem infelizes pra burro. A angústia, o estresse em relação ao trabalho e a precarização parecem estar rolando até mesmo com o pessoal das outras áreas, aquelas mais tradicionais e bem-sucedidas. Nesse fim de semana, ao conversar sobre o assunto com alguns amigos do meu marido, brinquei que o João é tipo o Julius – com mais uma filha a caminho, atualmente ele tem dois empregos. “Todo mundo aqui é o Julius, Fabi”, o amigo dele, advogado, respondeu. “Eu não conheço é quem tenha só UM emprego”.
Não tenho condições aqui de escrever um ensaio cabeçudo e pertinente sobre a fragilidade das relações econômicas no capitalismo contemporâneo. Não tenho condições de escrever sobre muitas coisas, exceto as que cutucam meu coração e têm pouco efeito material. O meu único talento é conseguir me expressar por meio da linguagem, e mesmo assim é um talento que eu precisei me esforçar muito para exercer. Se hoje consigo ganhar a vida com isso – não só usando a minha literatura, mas também os trabalhos relacionados – foi depois de um longo processo de me permitir. Não foram poucos os que duvidaram e são muitos os que ainda questionam.
Seguir uma vida criativa, no entanto, não é um processo passível de validação externa. Ninguém vai te apoiar a ser artista, principalmente nessa situação econômica. A sugestão é que isso seja sempre colocado em segundo plano, como o segundo emprego que não vai te dar dinheiro, e essa é a situação de 99,8% dos escritores que eu conheço, inclusive os que são como eu – abandonaram carreiras mais ou menos estáveis e hoje se dividem entre a literatura e os freelas. A gente até sonha. Outro dia mesmo escrevi no Notes sobre a fantasia que alimento de uma vida que nunca vai ser possível. E é justamente a consciência daquilo que é permitido o antídoto para viver mais tranquila.
Porque, sim, talvez a gente nunca consiga se dedicar inteiramente à literatura. Mas talvez chegue o dia em que o seu primeiro emprego seja escrever uma newsletter e dar aulas de escrita, o que te libere tempo para escrever. Talvez você publique alguns livros que não vendam muito, mas que tenham leitores suficientes para te motivar a continuar escrevendo. E mesmo que o reconhecimento estrondoso nunca venha, ainda assim pode ser imensamente satisfatório seguir o conforto de uma vida simples e devotada para a invenção. Ajustar as expectativas, pelo menos no meu caso, foi fundamental para seguir trabalhando. Afinal, eu sigo nessa vida porque gosto e acredito nela, do jeito que dá para ser.
O que não significa, é claro, que eu não me atormente com a esfera objetiva. Se estou escrevendo sobre essas coisas, me expondo com tanta franqueza, é porque me preocupo com o futuro. Quando você tem uma filha pequena e está com 37 semanas de gravidez, é natural se preocupar, acho. Na semana passada, comecei a sentir umas cólicas e percebi que estava rezando para que não fosse a Cora ameaçando chegar mais cedo. Não que eu não esteja preparada para recebê-la, e sim porque preciso trabalhar pelo menos alguns dias para ter dinheiro em março, inclusive para pagar o plano de saúde que vai me permitir parir em um ótimo hospital. Eu amo o fato de ser uma mãe que seguiu seus sonhos, amo a ideia de poder mostrar às minhas filhas os livros que escrevi e amo sobretudo o privilégio que é poder trabalhar de casa, conseguir pagar alguém para me ajudar e acompanhar o crescimento delas de pertinho. O que não amo, confesso, é me preocupar todos os dias em como eu vou manter essa estrutura de pé, com os caminhos frágeis que escolhi trilhar. Me sinto uma louca. Vou sustentar essas meninas com palavras????
A sorte é que tenho um lado que é, sim, bastante pragmático. Não nasci em um lar de pessoas endinheiradas, pelo contrário – meus pais são comerciantes. Não sou a criança que cresceu tendo acesso ao dinheiro, o que me faz ter uma consciência ainda maior de que preciso saber ganhá-lo, e aprendi com mamãe um truque ou outro de empreendedorismo popular. Já tirei alguns coelhos da cartola, quando precisei, e sempre dou um jeito de me virar, inclusive utilizando o recurso da internet ao meu favor.
Tenho acompanhado com muito interesse o recente debate sobre o cansaço coletivo das redes sociais, aliás, e confesso que também me sinto esgotada, mas fico ainda mais triste ao lembrar que eu não posso me dar ao luxo de não ter instagram. Eu sou escritora, moro em Brasília e preciso divulgar meus livros. Já não tenho a possibilidade de frequentar quase nenhum evento literário (e quase nunca me convidam, porque pagar a minha passagem sai caro e não estou valendo tanto). A internet é o único lugar onde posso aparecer sem mutilar toda a minha vida.
Esse meu lado pragmático, no entanto, coexiste com o outro, que é o lado que efetivamente abastece a minha alma, o lugar onde me sinto mais eu. Posso até parecer uma pessoa normal por fora, mas por dentro cultivo um mundo muito peculiar. Estou constantemente ruminando as coisas que percebo ao meu redor, nem sempre do jeito mais convencional, e se me vir quieta demais pode ter certeza que a brisa é forte. Mesmo que não esteja escrevendo nada no momento, parece que a minha cabeça insiste em escrever o tempo todo. Imagino personagens que ainda quero fazer. Imagino livros inteiros. Tenho ideias na fila do banco. Faço um inventário detalhado das minhas sensações mais inquietantes, não com o objetivo de me compreender, e sim de utilizar em alguma ficção. Quando vivo uma experiência muito intensa, já sei que vou usar aquilo de alguma forma, mesmo que não tenha ainda acabado de viver.
Essas duas partes vivem em simbiose, são meus hemisférios esquerdo e direito do cérebro. Uma implica imensamente com a outra. Uma sabota a outra. O meu lado pragmático, digamos assim, é sempre nervoso, quase sempre triste, me diz que sou um fracasso sofisticado e com frequência pensa em largar tudo. O meu lado poético tem sempre muita esperança, acha que a nossa existência é mais do que a palavra sucesso dá conta de processar, e lembra que escrever é o meu Ikigai. Do encontro entre os dois, acho, é que surge o foco.
Sim, eu vou sustentar essas meninas com palavras.
Vai vendo.
VEM AÍ
Embora tenha sido meu lado poético o grande idealizador desta querida newsletter, meu lado pragmático é o gerente geral. Nós vemos o Substack como um refúgio, sim, e também como um trabalho. Por isso, estou produzindo alguns textos que serão disparados durante a minha licença-maternidade, quando a Cora nascer (na imagem acima tem uma prévia do que já escrevi). A maior parte dos textos vai somente para os assinantes pagos. É minha forma de vender a única coisa que eu tenho para vender. Caso possa assinar, custa apenas R$ 9,90 por mês e vai ajudar muito nesse tempo em que não poderei trabalhar. Assine aqui.
Você também pode apoiar o meu trabalho comprando e lendo meus livros. Conheça: Apague a luz se for chorar e Como se fosse um monstro.
Caso ainda esteja por lá, me siga no instagram.
Tem tanta coisa nesse texto que mexeu comigo Fabi. E em vários departamentos das entranhas. Processando.. devagarinho. Obrigada!
Fabi, eu estava justamente pensando esses dias que nem mesmo os editores mais bem sucedidos que conheço possuem só um emprego, estão constantemente revisando, preparando, escrevendo blurbs, aparatos no geral.
Quando comecei a fazer freelas confesso que me sabotei um tico, pensamentos do tipo “meu deus, vou ter sempre que me desdobrar em 30 porque a profissão que escolhi seguir não me sustenta satisfatoriamente só com um trabalho?”, não sabia se me sentia orgulhosa ou frustrada.
No fim, os freelas nada mais são do que “bicos” gourmet e que hoje me orgulho muito, mas que não deixam de ser exaustivos…
Obrigada pela franqueza sempre 🫶