Desde que terminei meu livro novo, não sei quantas vezes já o reli. Tenho essa cisma com todos os romances que escrevi na vida: meu truque é deixar passar um tempo após a escrita, coisa de um mês ou um pouco mais, e então pego para reler. O objetivo é tentar avaliar com uma perspectiva diferente, avaliar se está bom, como se eu pudesse conjurar outros olhos nesse processo. Com esse novo livro, então, o medo tem sido grande. Em muitos aspectos, ele é bem diferente dos meus dois romances anteriores, e tenho receio de que esteja ruim e não agrade. Felizmente, durante as releituras não me peguei odiando a história, na verdade até achei bem boa (você não me deixe passar vergonha publicando livro ruim, pedi para a minha editora, e ela garantiu que isso não vai acontecer). O contrato de edição está assinado e já fiz as primeiras modificações... O livro sai no fim desse ano ou em 2026. O título que ficou definido é Temporada de incêndios.
Uma coisa engraçada sobre esse título, que eu amo, é que ele pertencia a uma outra história minha, um livro sobre um feminicídio que escrevi, mas não tenho intenções de publicar. Curiosamente, no entanto, o nome encaixou como uma luva nesse novo trabalho, então cometi um plágio de mim mesma. Não é a primeira vez que faço isso, nem será a última. Nós, escritores, estamos sempre reciclando as coisas: ideias, personagens, às vezes até tramas inteiras. É para isso que serve a experimentação, é por isso que não podemos nos deixar abater com um trabalho que sai meio torto e não serve a muitos propósitos – um dia, talvez, ele seja útil.
A protagonista do Temporada de incêndios é uma jovem taróloga. Não é a primeira taróloga que fiz – tenho um outro livro, chamado A tristeza dos outros, que também era capitaneado por uma moça que tira cartas (tenho carinho por esse livro, mas ele é muito raso e ruim, coitadinho). A Catarina, minha pequena taróloga do Temporada, é uma personagem muito melhor, e ela me veio em um momento em que falar sobre o futuro fazia muito mais sentido. Meu novo romance é assim, sobre entender a imensidão do que vem pela frente, sobre crescer com a ameaça de um colapso climático, sobre aprender a viver, fazer amigos e sofrer por eles. Não tenho a menor vergonha de reciclar minhas próprias obsessões.
Por essas e outras, sou uma grande defensora da prática obsessiva da escrita. Aquele papo de ficar uma vida escrevendo a obra perfeita não cola comigo. Acho, sim, que a obra perfeita nunca vai existir, pelo menos não para nós, reles mortais – é preciso, antes, esfregar a cara no chapisco das palavras, se atrever por um bocado de becos sem saída. Treinar, suar a camisa. Escrever um monte de capítulos inúteis, errar muito e severamente, para então recomeçar. A gente aprende muito com as histórias depois de escritas, até mesmo com aquelas que deixamos para trás.
É só com um acervo das próprias ideias, juntando palavras e contextos suficientes, que podemos perceber para qual direção nossas urgências criativas caminham, é então que encontramos aquela coisa preciosa, sobre a qual muito já falei, que algumas pessoas chamam de “sua voz” e eu prefiro chamar de “projeto literário”. A criação literária tem muitos ângulos misteriosos, bate em vários cantos, e tem coisa sobre a gente, enquanto artista, que só dá para descobrir escrevendo.
Uma hora vou parar e fazer o inventário de quantos romances tentei escrever. Acho que foram mais de dez. Não terminei todos eles, claro. Com alguns, entrei em crise logo no começo, outros abandonei faltando poucas páginas para concluir. Sou muito crítica comigo mesma, como vocês podem perceber, e por muito tempo padeci de um medo incongruente de estar perdendo tempo com a ideia errada. Foi então que entendi que todas as ideias seriam erradas enquanto eu não insistisse nelas, foi então que cunhei meu lema de vida, quando se trata de escrever: o livro certo é aquele que a gente termina. Tenho, portanto, alguns manuscritos concluídos. Por alguns, guardo carinho, mas não tenho a menor intenção de trazê-los a público, justamente porque acho que não estão muito bons.
Outro dia estava lendo a entrevista da Mariana Salomão Carrara no portal O joio e o trigo e me identifiquei muito com um trecho em que ela diz que escrever romances é a forma como ela se diverte (a entrevista, aliás, está muito boa, e o novo livro dela foi um dos melhores que eu li no ano passado). Até gostaria de fazer a figura da escritora misteriosa que sofre para colocar as palavras no papel, acho mais charmoso, mas a verdade é que bolar histórias me dá um barato danado, e fico significativamente melancólica quando não estou escrevendo nada longo. Não sou uma artista misteriosa, sou um cachorro vira-lata que tem tremelique se não está escrevendo. Acho que escrever é de graça, é gostoso, o que atrapalha são nossos surtos internos, nossas crises de autoestima, e para elas a minha solução é a mesma aplicada a todos os outros obstáculos da minha vida, pelo menos ultimamente: eu me faço de louca e sigo em frente, tentando não ouvir as vozes que me dizem que sou um lixo, vozes que estão por aí em abundância. Como diria o nosso sábio Chorão – hoje ninguém vai estragar meu dia.
Claro que existem os períodos de silêncio, em que faz bem viver um pouco, e tempos de muito cansaço, em que não dá para fazer da escrita uma possibilidade. Também acontece comigo, mesmo sendo uma maníaca, um pinscher cheio de energia. Não considero que sejam bloqueios criativos, na verdade nem acredito muito nessa palavra, porque acho que a criatividade nunca é bloqueada, às vezes ela está só anêmica e desidratada, precisando tomar um sol. É apenas a necessidade de um tempo, de um respiro e amadurecimento. Ou necessidade de leitura. Quando não me vem a vontade de escrever, quando estou na seca, eu leio. Em algum momento, a onda bate e volta. A literatura de ficção funciona assim, sempre retroalimentando a si mesma.
Aos que pretendem seguir a escrita como ofício, também é peremptório construir uma gaveta. Todas as pessoas do mercado editorial com quem já troquei ideia me disseram que, quando gostam do trabalho de alguém, querem saber o que mais aquela pessoa produziu. Pode ser que você publique um livro que não venda quase nada, por exemplo, mas que mostre seu trampo de forma suficientemente boa a ponto de atrair oportunidades melhores de publicação. É muito comum que escritores que se destaquem por um ou outro trabalho sejam abordados por “olheiros”, sejam editores ou agentes literários, e ao ser questionado por um profissional da área se você tem algo inédito a melhor coisa que você pode responder é: tenho, sim. Foi assim que aconteceu comigo, pelo menos, e conto a história de como publiquei o Apague a luz se for chorar pela Alfaguara nesse texto aqui. Eu tinha chamado atenção por mandar bem em outros trabalhos, mas foi o texto inédito que me permitiu fechar um contrato.
Se por acaso você gastar um ou dois anos escrevendo um livro e chegar à conclusão, ao terminá-lo, de que ele não vai servir para nada, não se desespere. Primeiro, porque talvez o trabalho tenha salvação. Mas, caso não seja da sua vontade refazer a mesma história, não faz mal. Seu braço não vai cair pelas horas gastas, a vida não vai acabar. Você aprendeu no processo, e agora pode usar isso como trampolim para os próximos capítulos. Literalmente.
Como um homenzinho de cartola e bengala em um rótulo de uísque: keep writing.
Avisos da paróquia
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parei uns minutos em "entendi que todas as ideias seriam erradas enquanto eu não insistisse nelas" haha enfim, parabéns pelo bebê que esta por vir!! e uma pergunta meio aleatória: você acredita que rola uma certa transição entre escrita pessoal de auto descoberta para a escrita de ficção? acha que são coisas totalmente diferentes ou... acha que há alguma superfície de contato onde a escrita de romances encosta na escrita de auto descoberta?
Eu simplesmente amei o título do livro!
Essa coisa de plagiar a si mesmo é meio maluca. Reescrevendo meu livro, fico tentando não me repetir - mas que diferença faz, se o livro nem foi publicado e quem escreveu aquele original fui eu?
Como sempre, excelente texto :)